
Mais de 8 milhões de americanos voltaram às ruas neste fim de semana em protesto contra o autoritarismo do governo Trump.
Foi a segunda onda de mobilizações populares – apelidadas “No Kings” – contra o presidente dos Estados Unidos. A primeira havia ocorrido em 15 de junho e já tinha sido a maior da história americana, com mais de 5 milhões de pessoas reunidas em milhares de cidades para denunciar os desmandos da Casa Branca.
Em virtude dos últimos acontecimentos no Brasil, a articulação bolsonarista apostava no sectarismo ideológico da administração Trump para atacar as instituições democráticas brasileiras. A estratégia contava com um governo americano popular e forte, capaz de levar adiante seus arbítrios — entre eles, chantagear o Brasil em troca da subjugação do Judiciário e do sistema político nacional.
Essas manifestações representam, portanto, um revés não apenas para o autoritarismo de Trump, mas também para aqueles que, no Brasil, apostaram na força de seu modelo como instrumento de pressão contra a democracia brasileira.
De forma mais abrangente, trata-se de uma derrota para toda a extrema direita mundial, que já apresenta sinais evidentes de desgaste em todo o planeta. O recente insucesso de Milei nas eleições legislativas de Buenos Aires e sua queda nas pesquisas para as próximas eleições nacionais, assim como o fracasso da extrema direita em Portugal, ilustram esse movimento. As eventuais derrotas da esquerda no mundo ocidental, como na Bolívia e o iminente retrocesso eleitoral no Reino Unido, originam-se mais em erros domésticos do que em uma suposta onda conservadora global. No caso boliviano, uma divisão interna da própria esquerda levou à vitória da centro-direita — mas ao menos a extrema direita foi contida. Quanto ao Reino Unido, o governo Starmer é tão pateticamente subserviente aos Estados Unidos, tão obediente a todas as narrativas imperiais — da russofobia ao sionismo — que seria uma ofensa considerá-lo um governo de esquerda.
A maior ironia de tudo isso é que a violência do governo Trump está desencadeando um processo inimaginável há alguns anos: o nascimento de uma esquerda nos Estados Unidos. Trata-se de um processo que ainda precisa ser amadurecido, mas com mais três anos de luta pela frente, é possível testemunhar o surgimento de algo verdadeiramente novo no país. Isso virá, é claro, ao custo de muitas dores, muito sofrimento e inúmeras violações aos direitos humanos e às liberdades americanas. No momento, o que se observa é a formação, ainda incipiente, de uma grande coalizão democrática contra o autoritarismo de Donald Trump — que hoje é, na verdade, o centro de toda a extrema direita global. As grandes massas populares talvez não acompanhem tanto o que se passa nos Estados Unidos, mas os setores mais influentes da opinião pública latino-americana acompanham com atenção. Eles estão testemunhando a emergência de um governo fascista, radical e extremamente preconceituoso contra imigrantes latinos, negros e estrangeiros em geral — e tudo isso repercutirá profundamente nas relações políticas e culturais da região.
O desespero da direita americana diante das manifestações ficou evidente nas declarações de suas lideranças. A porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, afirmou que “o principal eleitorado do Partido Democrata é composto por terroristas do Hamas, imigrantes ilegais e criminosos violentos”. O presidente da Câmara dos Representantes, Mike Johnson, chamou os protestos de “manifestação de ódio à América” e disse esperar ver “apoiadores pró-Hamas”, “tipos antifa” e “marxistas em plena exibição”. No dia seguinte às manifestações, o próprio Donald Trump tentou minimizar o impacto dos protestos, declarando que “as demonstrações foram muito pequenas, muito ineficazes, e as pessoas eram malucas”. Como resposta às mobilizações, Trump publicou um vídeo gerado por inteligência artificial em que aparece usando uma coroa dourada, pilotando um avião de combate com a inscrição “King Trump” e despejando líquido marrom — aparentemente fezes — sobre os manifestantes em uma paisagem urbana que parece ser a Times Square.
Todo esse cenário resulta em uma derrota política e simbólica do trumpismo nos Estados Unidos. Não é preciso ser um grande especialista em comunicação para compreender que se trata de uma reviravolta geracional. As manifestações representaram um golpe simbólico de grande impacto e um abalo moral para o governo Trump. Como isso se refletirá politicamente ainda pode demorar, mas o efeito é profundo e duradouro.
A tentativa de associar a oposição a Trump ao movimento de esquerda radical, marxistas e defensores da causa palestina tem um lado profundamente irônico: acostuma o Partido Democrata a conviver e aceitar sua própria esquerda. Figuras como Bernie Sanders — senador independente com conexões históricas com o partido —, Alexandria Ocasio-Cortez — uma das deputadas mais populares, com todas as qualidades para ser candidata à presidência no futuro — e Zohran Mamdani, autodeclarado socialista e defensor da causa palestina, provável próximo prefeito de Nova York, ganham legitimidade nesse processo. Ao acusar seus opositores de serem antifa, pró-Hamas, marxistas e esquerda radical, Trump produz um movimento político de coesão que ajuda o centro liberal americano a quebrar seus preconceitos contra essas correntes, pois todos passam a fazer parte de uma frente ampla democrática.
Essa dinâmica gera uma educação política revolucionária dentro dessa frente ampla que está sendo construída organicamente nos Estados Unidos. Ela promove coesão ao reunir marxistas, socialistas, defensores da causa palestina e liberais da tradição democrática americana, fazendo com que todos deem um passo de convergência. Isso é fundamental não apenas para os Estados Unidos, mas para o mundo.
Um dos momentos mais emocionantes dos protestos foi o discurso do governador de Illinois, JB Pritzker, em Chicago. Diante de uma multidão de mais de 200 mil pessoas, Pritzker declarou: “Estamos aqui hoje para defender o princípio que define a América desde sua fundação: a crença de que a tirania, em qualquer forma, deve ser resistida por pessoas de consciência — especialmente aqui em Chicago. Jamais nos renderemos.” O governador alertou que “a tirania não chega com proclamações dramáticas: na maioria das vezes, ela vem silenciosamente, envolta na linguagem da lei e da ordem, apontando o dedo para alguém que não se parece com você, prometendo segurança enquanto exige que sacrifiquemos nossos vizinhos.” E concluiu de forma contundente: “Isso não é uma escolha política — é um imperativo moral. Donald Trump, fique longe de Chicago! Não vamos nos curvar. Não vamos nos submeter. Chicago não se renderá ao autoritarismo de Trump.”
Durante o discurso de Pritzker, manifestantes exibiam cartazes com mensagens como “Hands Off Chicago” (Fora de Chicago) e “No Human is Illegal” (Nenhum Humano é Ilegal) — esta última em inglês e espanhol. A frase carrega um significado filosófico profundo, especialmente diante da forma desumanizadora como o governo Trump trata os imigrantes. A expressão “illegal aliens” (alienígenas ilegais), amplamente utilizada pela administração e pela direita americana, revela uma tentativa deliberada de desumanização. A palavra “alien” (alienígena), que em inglês também designa seres extraterrestres, é a mesma usada em filmes como Alien, de Ridley Scott. Essa escolha vocabular parte do pressuposto de que o imigrante sem documentação não é um ser humano. Durante o debate sobre o shutdown do governo, republicanos argumentaram que democratas queriam estender subsídios de saúde a “illegal aliens” (alienígenas ilegais) — uma polêmica que infelizmente os próprios democratas não exploram de maneira totalmente humanista, limitando-se a negar que querem estender esses benefícios aos imigrantes sem documentação. É surpreendente que o país mais rico do mundo queira construir uma sociedade fascista em que uma pessoa, por ser imigrante sem documentação, não tenha direito a atendimento hospitalar. Em nenhum lugar do mundo civilizado existe isso. No Brasil, um país muito mais pobre que os Estados Unidos, qualquer pessoa que sofra um acidente na rua é atendida gratuitamente pelo sistema público de saúde. Muitos dilemas vividos entre democratas e republicanos nos Estados Unidos precisam ser resolvidos com a instituição de um sistema de saúde público, gratuito e universal. O Partido Democrata deveria defender isso abertamente — não importa se para imigrante com ou sem documentação, todos têm esse direito, inclusive pela estabilidade sanitária do próprio país. A recusa em reconhecer essa humanidade básica revela o núcleo autoritário e desumano do projeto trumpista.
Por fim, esses 8 milhões de americanos que protestaram contra Trump também protestaram contra uma ajuda de 20 bilhões de dólares ao governo fracassado de Milei na Argentina. Protestaram contra o tarifaço imposto ao mundo inteiro pela administração Trump — impostos que, na prática, são pagos pelos próprios consumidores americanos, elevando o custo de vida sobretudo dos pobres e da classe média e aumentando a desigualdade de renda no país. No caso do Brasil, esse punitivismo tarifário assumiu contornos especialmente graves, baseado em uma chantagem política contra as instituições democráticas nacionais e em defesa de um fascista como Jair Bolsonaro. Trata-se, portanto, de uma derrota absoluta do bolsonarismo — o que confirma uma previsão que tenho feito: Eduardo Bolsonaro pode ser preso nos Estados Unidos por ter influenciado o governo americano, com custos financeiros pesados para o contribuinte norte-americano, a enveredar por um caminho autodestrutivo e antidemocrático.
Publicado originalmente em O Cafezinho