No túmulo de Marx em Londres. Por Paulo Nogueira

Atualizado em 8 de janeiro de 2017 às 18:40
O túmulo de Marx, em Londres
O túmulo de Marx, em Londres

 

“OS FILÓSOFOS, até aqui, interpretaram o mundo. A questão é transformá-lo.”

Aqui estou eu, diante da célebre frase de Karl Marx. Muitas vezes a li, muitas vezes a ouvi, muitas vezes a escrevi. Mas há uma diferença. Desta vez, estou lendo-a na frente de Marx, no cemitério de Highgate, no norte de Londres. Fazia tempo que eu queria visitar Marx na tumba em que sua cabeça enorme, barbada e séria sugere um leão vigilante.

É um cemitério pago, algo que eu nunca tinha visto antes. A entrada custa 3 libras, cerca de 9 reais. Pego um pequeno guia e gasto mais 3. É um típico domingo de primavera londrino: céu azul, sol que aquece sem ferver, gente esparramada pela grama dos parques.

Londres tem algumas coisas em que é única. Sua grama, por exemplo. Não há todas aquelas coisas desagradáveis que você encontra na grama de São Paulo ao se deitar nela, como pequenos insetos inidentificáveis. A grama paulistana incomoda e afugenta. A londrina acolhe e encanta.

Marx não está inteiramente morto em Highgate. É visitado sempre por pessoas de todo o mundo. São turistas, meros curiosos, ou esquerdistas renitentes e nostálgicos. Eles deixam flores na tumba e depositam nas laterais bilhetes em papeizinhos que não voam porque pequenas pedras os seguram. “Os homens morrem, mas os sonhos ficam”, leio num, em inglês. Há um outro escrito em chinês, e não consigo identificar a linguagem de mais um. As mensagens não têm o arrebatamento ingênuo e copioso que você vê nas palavras que admiradores dos Beatles deixam no muro do estúdio de Abbey Road, mas trazem também um inequícovo reconhecimento póstumo. A gratidão em Abbey Road é gritada. Em Highgate, sussurrada.

Marx acabou meio que por acaso vindo para Londres, onde passaria os últimos vinte anos de sua vida atormentada por dívidas, furúnculos e brigas de toda natureza. As idéias revolucionárias o fizeram indesejado primeiro na sua Prússia e depois em Paris, onde se asilou. Londres era para ser uma escala temporária, mas se tornaria sua cidade definitiva. Sem Londres Marx não seria Marx. Foi aqui, na opulência literária incomparável do British Museum, que ele pôde devorar os livros que o habilitariam a escrever O Capital em sua letra ininteligível exceto para Jenny, sua mulher. Ela passava a limpo os garranchos que o marido trazia da lendária Reading Room (Sala de Leitura) do museu, a mesma que algumas décadas depois Lênin frequentaria sob o codinome de  Jacob Richter.

O Capital é, depois da Bíblia, o livro mais vendido do mundo. Ambos são muito mais comprados que lidos. O Capital é tão complicado que os estudiosos inventaram uma fórmula para facilitar a leitura na qual a ordem dos capítulos é outra. Assim como Proust e Montaigne, Marx não precisa ser lido linearmente. Algumas linhas ou páginas ao acaso logo mostram ao leitor a força descomunal da prosa marxista. Um frasista de gênio, Marx é continuamente citado.  “Um fantasma ronda a Europa” e “a história se repete como farsa” são frases que se transformaram em clichês de tanto usadas.

MARX INVENTOU MUITA coisa. Inventou o esquerdista barbudo, uma imagem que resistiu ao tempo. Os brasileiros a cohnhecem bem. Se Marx não fosse barbudo, Fidel provavelmente importaria barbeadores para si próprio e sua corte. Marx inventou também a crença fanática num sistema que responderia simplesmente a todas as questões que a humanidade pudesse erguer. No apogeu do marxismo, seus seguidores tinham a certeza de que O Capital explicava tudo. É mais ou menos o que pensam hoje os islamistas extremistas sobre o Corão.

Marx inventou ainda, indiretamente, o Welfare State, o Estado de Bem Estar Social, o modelo capitalista europeu no qual os trabalhadores são protegidos. Seu Manifesto Comunista, de 1848, foi determinante para que, poucos anos depois, a Alemanha de Bismarck (e de Marx) criasse leis inovadoras trabalhistas. O Manifesto conclamava os proletários a se insurgir porque nada tinham a perder exceto “os grilhões” e tinham “o mundo” a ganhar. O Welfare State, se não ofereceu o mundo aos proletários, livrou-os das correntes e deu-lhes o bastante para que tivessem o que perder.

Mas Marx inventou também o esquerdista intolerante e fundamentalista. Marx jamais conseguiu conviver num ambiente de idéias que se contrapõem. Rompeu com pensadores de esquerda como Proudhon e  Bakunin por não aceitar divergências. A alma intransigente de Marx moldou a de marxistas como Lênin e Stálin.

A crise econômica financeira mundial colocou Marx em situação de vantagem sobre seu arqui-rival em influência, o escocês Adam Smith. Smith, autor do clássico A Riqueza das Nações, acreditava que a “mão invisível” do mercado corrigiria tudo. É uma idéia que hoje não parece ter muitos pontos de sustentação. Não foi só Marx que ressurgiu. Também Keynes, o aristocrático inglês que entendia que o governo tinha que de alguma forma guiar a “mão invisível”, voltou a ser tema de palestras, discussões e livros.

Aqui estou eu diante do túmulo de Marx. Taurino como eu, ele de 5 de maio, eu de 8. “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”, está gravado abaixo do busto. É outra frase célebre sua. Os trabalhadores de todo o mundo afinal não se uniram, como o tempo mostraria. Mas como eles poderiam fazer isso se o homem inflamado e excepcionalmente cintilante que os conclamou jamais conseguiu, ele próprio, se unir a ninguém que ousasse pensar diferente?

Me despeço, depois de uns trinta minutos, de Marx. Hora de almoçar. Lanço um último olhar ao cemitério, e gosto da quietude que encontro ali. Sábios da antiguidade recomendavam às pessoas que  frequentassem cemitérios para jamais esquecer da sua mortalidade.

Sigo meu caminho de volta. Como era previsível, me perco e ando o dobro do necessário para chegar à estação de metrô. Vejo de passsagem um salão de beleza chamado Stasi e penso que, se eu fosse alemão, jamais entraria num lugar que levasse o nome da polícia secreta da extinta Alemanha Oriental. Antes de desviar meu pensamento para coisas mais prosaicas como a comida do almoço, reflito uma última vez sobre Marx, e me vem a sensação de que o busto do homem barbudo em Highgate é, no fundo, um monumento àquilo que poderia ter sido e que não foi.