Vitória de Lula foi de “raspão” e extrema-direita só cresce no mundo, diz ex-diretor da ONU ao DCM

Giancarlo Summa falou à Superlive de Domingo do DCM

Atualizado em 4 de dezembro de 2023 às 8:53
Giancarlo Summa. Foto: CINU/Flickr
Giancarlo Summa. Foto: CINU/Flickr

O jornalista e cientista político ítalo-brasileiro Giancarlo Summa é pesquisador na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) em Paris e co-fundador do Instituto Latino-Americano para o Multilateralismo (ILAM). Ele concedeu uma entrevista à Superlive de Domingo do DCM, conduzida por Gilberto Maringoni.

Falou sobre a “normalização do fascismo” por parte de liberais ao longo da história e como a esquerda não dá uma perspectiva de combate efetivo contra a desigualdade social.

Summa foi diretor de comunicação da ONU no Brasil, México e África Ocidental. Com seu conhecimento, fez paralelos entre a ascensão nazismo e do fascismo no século 20 e os líderes extremistas de hoje, tratando sobre a manifestação vazia dos bolsonaristas e a eleição de Javier Milei na Argentina sobre os peronistas.

Confira os principais trechos.

A vitória “de raspão” de Lula e a extrema direita no mundo

Me felicito pelo fracasso na Paulista de bolsonaristas. Mas todos os indícios são de que a extrema direita de fato está crescendo no mundo. Na Holanda, um partido de extrema direita anti-imigrante rezando pela cartilha clássica do extremismo ganhou as eleições.

Temos a Itália sendo governada pela Giorgia Meloni, a primeira-ministra e herdeira política direta dos fascistas de Mussolini. Há influência deles nas eleições na Espanha em razão das alianças. Sem falar da Hungria, onde há mais de 15 anos o [Viktor] Orban é um dos líderes da extrema direita global mais longevos no poder. Assim por diante, essa história também acontece na América Latina.

Donald Trump não é o primeiro líder de extrema direita, mas, sem dúvida, o primeiro líder dessa leva num país central. Essas eleições que citei acabaram fortalecendo a extrema direita global pelo mundo.

A inspiração existe pelo tipo de linguagem que Trump utilizou e suas técnicas de comunicação através das redes sociais. Isso se aplica totalmente na América Latina.

Nas conferências da conservadoras, chamadas CPAC, eles se chamam de “conservadores”. 

Vamos traduzir para direitas e a própria extrema direita. O pessoal da CPAC inaugurou capítulos nacionais na Europa, na Hungria e na América Latina.

Nos últimos anos eles organizaram conferências anuais no Brasil. O Eduardo Bolsonaro é o principal articulador disso no Brasil. São atores que são importantes em seus países. O Lula teve essa espetacular vitória, mas isso foi de raspão.

Ou seja, foi uma vitória espetacular porque foi barrada a extrema direita, mas de raspão. No Chile, o José Antonio Kast, se estivesse numa eleição hoje, seria eleito presidente da República.

A aliança entre liberais e o fascismo na história

São momentos de agregação em que há um apoio indireto de vários institutos liberais, de formação de grupos de estudantes e coisas parecidas, como aquela rede que se chama Atlas Network. É uma entidade criada um pouco mais de 40 anos atrás nos Estados Unidos [foi fundada em 1981].

O pensamento que eles chamam liberal é, na realidade, o pensamento neoliberal extremista. Essas entidades fazem formação de quadros. O Brasil é o país onde eles são extremamente ativos.

A construção dessa linguagem de extrema direita num prisma econômico é neoliberal. Ou seja, no neoliberalismo extremo, o Estado é o inimigo, tem que acabar com os impostos, etc.

Essa cartilha hiper neoliberal é um celeiro da extrema direita que foi para o governo Bolsonaro. Digamos que Bolsonaro se elegeu mas sem ter um grupo sólido.

Foi em nome de vários interesses, mas digamos que sem um partido por trás dele. Bolsonaro e cerca de 100 quadros formados pelos vários institutos ligados ao Atlas Network foram trabalhar no governo. 

Eles foram lá para destruir o Estado brasileiro. Fizeram um trabalho realmente primoroso de formação de quadros, de construção de hegemonia cultural neoliberal da extrema direita e com dinheiro que vem de várias fontes nos Estados Unidos. Entre eles, há os irmãos Koch.

A cartilha deles é sempre a mesma: Estado neoliberal contra qualquer política que mudanças climáticas, contra qualquer política de inclusão social.

A direita defende a desigualdade entre os muitos ricos e e os muito pobres. É assim que eles pensam e não há por que reclamar deles.

A esquerda é ou deveria ser a parte que se opõe a essa visão de mundo. Mas não funciona muito bem assim.

O nazismo e o fascismo estão na memória do que conhecemos de Adolf Hitler, os campos de concentração, Auschwitz, a matança de judeus, de ciganos, de homossexuais. Mussolini na Itália com uma ditadura brutal.

Vemos isso como pontos fora da curva e “monstros” a serem evitados, “demônios na Terra”.

Quando aparecem as figuras do fascismo atual, como Bolsonaro, Javier Milei ou Trump, de início existe um choque. Quando você vê o Milei vestido de super-herói ou quase rosnando como se fosse o seu cachorro morto, ou Bolsonaro dando tiro para lá e para cá, é um tipo bizarro.

No momento seguinte há uma espécie de normalização do fascismo. Os caras são meio estranhos, mas vão conduzir a economia no sentido neoliberal. Eles vão privatizar.

“Não é tão surpreendente que Milei seja eleito”

Quando o Milei se elegeu, logo que saiu o resultado a bolsa de Buenos Aires subiu 20%. Os investidores ficaram muito felizes. E o ex-presidente Maurício Macri e outras figuras cercam Milei para pegar cargos no governo.

Fascismo para essas pessoas é normal. Os caras são estranhos e é “natural” morrerem 750.000 pessoas no Brasil na pandemia da Covid-19. Mataram não sei quantos do campo de concentração, mas liberalizou a economia.

Se a gente for olhar a cobertura da imprensa internacional, principalmente nos Estados Unidos, o governo de Hitler foi a normalização no começo. Dá um certo espanto. O ditador fez realmente bom para economia dos grandes grupos econômicos norte-americanos.

Deram conta desses comunistas, dos sindicatos. Eles foram eleitos e depois exerceram o poder por erosão dos espaços democráticos. Eles usam e usaram o instrumento democrático para corroer a democracia por dentro. Fizeram isso para tentar acabar com a democracia.

Tem um acúmulo de 90 anos de história, se consideramos o fascismo na Itália então é um século, desde a Marcha sobre Roma. Um século de experiência que nos mostra como funciona e, apesar disso, temos as almas iluminadas que continuam a dizer papo só durante a campanha eleitoral.

Os argentinos elegem um sujeito que, como eu falei, se veste de Batman, que rosna e que conversa com um cachorro morto chamado Conan. Te pergunto: como é possível e o que leva o argentino a votar num tipo assim? Qual é a causa disso?

Milei não é uma piada. Milei é uma tragédia. Como o que aconteceu conosco no Brasil de 2018. Até praticamente a véspera da eleição do Bolsonaro, nenhum de nós realmente acreditava que aquilo fosse possível. Digamos que houve uma certa negação de que isso pudesse acontecer exatamente pelo grotesco.

Um personagem que fala com o Conan e fala com os quatro cachorros que supostamente ele clonou a partir do DNA.

Hitler foi eleto chanceler na Alemanha e  país era o mais evoluído da Europa da época. Isso acontece quando as condições materiais e a crise social chegam tão fundas para uma parcela grande da população. Por isso, qualquer coisa, literalmente qualquer coisa, é melhor do que a oferta da política tradicional.

Na Argentina foi isso que aconteceu. É um problema. Milei ganhou infelizmente porque a inflação está em 140%. É o cálculo sobre o último mês. Se eles não fizerem algo, a inflação vai chegar em 700% ao ano. Ou seja, é um quadro de hiperinflação.

Nessa perspectiva, até os que trabalham não conseguem nem pagar comida do mês inteiro. Isso está deixando o país numa situação objetivamente mais grave do que aquela que deixou o governo Raúl Alfonsín, de 1989, primeiro governo depois da ditadura. Eu estava lá na Argentina no fim dos anos 80.

Diante desse quadro, a esquerda peronista lança como candidato da situação o Ministro da Fazenda, Sergio Massa. O cara que essencialmente conduziu a tragédia econômica.

Não é tão surpreendente que Milei seja eleito. E Javier Milei não é um outsider não.

A candidata da direita tradicional, Patricia Bullrich, está no governo. Lembra um pouco o que aconteceu no Brasil nas primeiras eleições depois da ditadura. Quem foi eleito foi Fernando Collor.

O problema que temos como esquerda na América Latina, como progressistas, é que você tem que reduzir a desigualdade. Não adianta crescer economicamente ou só criar empregos. Ou distribuir comida.

A Igreja Católica dava comida na porta das paróquias. Só que isso não é um projeto político. Então, como é que você sai dessa camisa-de-força neoliberal? Que não é só econômica. É também uma camisa-de-força teórica.

Muitas vezes os próprios dirigentes progressistas que se elegeram, foi o caso do Brasil e do Chile, não propuseram nenhum modelo econômico e social alternativo. Portanto, em termos de hegemonia cultural, vou citar o meu conterrâneo Antonio Gramsci: A direita está ganhando e nós progressistas, perdendo.

A não ser que a gente crie alternativas para ter um pensamento novo com uma visão econômica nova, tirando dos ricos para distribuir para a classe média e não somente para quem está morrendo de fome.

Tem que dar para comer, mas não é isso que cria um país. Não é isso que cria uma hegemonia cultural.

Sem essa mudança, não vai se criar politicamente e rigorosamente nada, porque o pobre vai votar para quem vai dar comida para eles e a classe média não fará o mesmo voto.

Milei ganhou na Argentina com uma vantagem muito superior à vantagem que teve o Lula contra o Bolsonaro.

Ninguém mais acreditava no modelo peronistas depois de quase 20 anos ininterruptos de governo, foi de 2003 até 2023, excluindo os quatro anos do Macri no meio. 

A Argentina está estruturalmente pior hoje do que estava há 20 anos. Então por que a população deveria continuar a votar nos peronistas?

Eu acho um horror a eleição do Milei, mas é isso.

Veja a live na íntegra.

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