
Quando estava prestes a me formar na UnB, eu, como a maioria dos estudantes, não tinha dinheiro para nada. E, uma curiosidade, só tinha um sapato. Lindo. De couro tressê. Com ele, ia à universidade, ao estágio, aos casamentos e jogava bola. Tudo, enfim. Minha futura sogra, que era inteligente, bem-humorada, antenada e minha amiga querida, um dia me disse: “Meu marido, quando faleceu, tinha ganhado vários sapatos de presente que nunca chegou a usar. Você se importaria de eu lhe dar de presente?”. Eu, que não sou pobre soberbo, aceitei na hora. E ela perguntou: “Quanto você calça?”. Eu, surpreso e com medo de perder algum, respondi: “De 37 a 42”.
Em um dos vários encontros no seminário em Lisboa, ouvi, de grandes empresários, de políticos de direita e de banqueiros, uma linha de raciocínio comum: repreender o governo Lula por ter, na visão deles, optado por uma política de “nós contra eles”. As críticas seriam no sentido de que isso era ruim para o Brasil e que eles não aceitariam. Ou seja, na visão “deles”, a divisão “nós e eles” era muito ruim. Imediatamente, pensei: ruim para quem, cara-pálida?! Para estarem assim tão bravos, seria negativo para eles, claro. Ou seja, ao que tudo indica, é bom para nós.
O que me espanta e me deixa perplexo é indagar: não é óbvio que teria que ser “nós contra eles”? Não seria isso absolutamente normal e esperado? Não é uma questão normal que os menos favorecidos queiram ter um tratamento, no mínimo, justo? Ou tentar algo mais igualitário? Não estamos falando só de direitos sociais; o grito “deles” é para não pagar impostos! Sim. A questão é que o Lula e o Haddad querem fazer uma justiça tributária mínima.
Na questão trabalhista, eles já passaram o rodo nos trabalhadores usando o Supremo Tribunal. Cada vez mais, os direitos trabalhistas estão definhando no Judiciário com o triste e tacanho argumento de que, nos tempos atuais, o trabalhador que luta pelos seus direitos atravanca o progresso. Não sei qual progresso é esse.
A questão do IOF, que realmente atinge muito o trabalhador — a classe mais pobre —, só virou um embate nacional quando os ricos colocaram o pé na porta. A ideia de os mais favorecidos pagarem mais impostos, até para poder isentar os realmente mais necessitados, é de uma lógica absoluta e irrefutável. E eu fico muito à vontade para defendê-la, pois estarei entre os que vão pagar mais. Por um momento serei “eles”, só que não estarei contra “nós contra eles”: tem como ser diferente?

É claro que essa discussão não pode apoiar críticas apelativas à postura de alguém de direita por pessoas, supostamente de esquerda, propondo guilhotina para uma menina de 5 anos por diferenças, quaisquer que sejam. Isso é uma questão a ser resolvida na seara criminal. Simples assim.
É fundamental que o Lula e a equipe econômica não desistam de tentar um mínimo de justiça tributária. É bom nos lembrarmos de um antigo partido, o PSDB, que tinha grandes quadros, intelectuais, e não tinha aquilo que o fez sucumbir: o povo.
E não tem nada de novo nesse debate “nós e eles”. Lembro-me de uma entrevista do grande deputado Genuíno, ao responder sobre como era seu critério de votação no plenário da Câmara quando não tinha tido tempo de estudar a matéria. Ele respondeu: “Vejo para que lado o Delfim Neto votou e voto ao contrário”.
O momento, é claro, é muito difícil para o governo. Os projetos sociais que marcaram as duas gestões Lula já foram, felizmente, incorporados totalmente pela população que precisa deles. É bom notar que esses importantes programas continuam relevantes, porém o povo quer mais. Bolsa Família, Farmácia Popular, Pé de Meia, Prouni, Minha Casa Minha Vida e outros são um direito incorporado à classe trabalhadora. É necessário algo novo. Que tal um pouco de justiça social com um choque de planejamento tributário? Ou seja: “nós contra eles”.
Lembrando-nos de Torquato Neto, no “Poema do Aviso Final”: “É preciso que haja algum respeito, ao menos um esboço ou a dignidade humana se afirmará a machadadas”.