Nossa justiça é um “faz de conta”. Por Afrânio Silva Jardim

Atualizado em 16 de julho de 2018 às 7:45
Afrânio Silva Jardim, um dos mais respeitados processualistas do Brasil

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO FACEBOOK DO AUTOR

A VERDADE É QUE TUDO NÃO PASSA DE UM “FAZ DE CONTA”. A NOSSA JUSTIÇA ESTÁ “TERCEIRIZADA”. A SOCIEDADE CIVIL NÃO SABE E A GRANDE MÍDIA NÃO TEM INTERESSE DE MOSTRAR. HIPOCRISIA OU CINISMO ???

O assustador é que estamos constatando que o pior se dá quando eles, em muitos casos, não “terceirizam” suas decisões. O pior se dá quando eles mesmos prolatam suas decisões !!! É terrível esta constatação. O punitivismo, a mediocridade e a contaminação ideológica estão desgraçando o nosso sistema de justiça criminal.

O dramático disto tudo é que o exemplo vem de cima, dos Tribunais, inclusive dos superiores. Todos sabem que muitos (senão a maioria) dos votos dos órgãos colegiados são elaborados pelos assessores. O pior é que realizam julgamentos de vários processos em conjunto. Chamam julgamento por ” listas” … Talvez por isso, poucos querem se aposentar e, em parte, fingem que trabalham até os 75 anos.

Em órgãos jurisdicionais colegiados, alguns magistrados “pedem vista dos autos”, com a maioria de votos já formada, e “fingem” não ter prazo para retomar o julgamento. Na prática, retardam a proclamação do resultado do julgamento com o qual não concordam ou julgam inoportuno.

No primeiro grau, é o mesmo “faz de conta”. Os estagiários, secretários ou assessores do Ministério Público elaboram muitas de suas peças processuais, o mesmo ocorrendo no âmbito das Defensorias Públicas.

Ademais, talvez a maioria das sentenças seja redigida pelos secretários ou assessores dos juízes de direito, tudo se repetindo no segundo grau de jurisdição.

Agora, com os chamados ” julgamentos virtuais”, tudo isto sairá do controle (se é que existia…). Em outras palavras, ” liberou geral”.

Não é por outro motivo que estes “operadores do Direito” encontram tempo para viajar e dar palestras, inclusive no estrangeiro. Escrevem textos jurídicos e livros de Direito, embora nem sempre de muita qualidade.

Fingimos tudo isso há muito tempo. Os Delegados de Polícia fingem que presidem os inquéritos policiais e que presidem a lavratura de todos os autos de prisão em flagrante. Juízes e membros do Ministério Público fingem que não sabem.

Em alguns juízos, os membros do Ministério Público e/ou os Defensores Públicos assinam os atos processuais sem que estejam presentes quando da realização dos mesmos. Em alguns juizados especiais, a “bagunça” já se encontra institucionalizada há muito tempo.

Casos há em que se procura, nos corredores do forum, algum advogado apenas para estar figurando como defensor técnico de algum réu. Sem conhecer o processo, este advogado nada faz de eficaz, apenas legitimando mais uma farsa … É tudo um “faz de conta”.

Fingimos que fazemos o que efetivamente não fazemos e fingimos que não sabemos que os outros também fingem …

Muitos agentes políticos e funcionários públicos fingem não saber que receber remuneração acima do “teto” viola a Constituição Federal, segundo regra nela existente, de forma bastante clara. Fingem ser eticamente sustentáveis as formas “engenhosas” para contornar o referido impedimento.

Outros fingem que não está escrito, expressamente no Código de Processo Penal, a exigência de desatendimento à prévia intimação regular para justificar uma condução coercitiva. Eles fazem de conta que o direito ao silêncio, assegurado na referida Constituição de República, não impede a condução coercitiva dos investigados e réus para os seus facultativos interrogatórios!

O Supremo Tribunal Federal “faz de conta” de que algo está escrito na Constituição Federal ou “faz de conta” de que algo não está escrito na Constituição Federal, segundo sua conveniência ou desejo pessoal de seus ministros. Vale dizer, o Supremo Tribunal Federal “faz de conta” que estamos em um verdadeiro Estado de Direito.

O Supremo Tribunal Federal “faz de conta” que o artigo 283 do Cod.Proc.Penal não existe: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, EM DECORRÊNCA DE SENTENÇA CONDENATÓRIA TRANSITADA EM JULGADO ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Aliás, magistrados e membros do Ministério Público “fazem de conta” que não recebem subsídios acima do “teto” constitucional e que é legítimo receber verbas “indenizatórias” duvidosas, sem recolher o imposto de renda sobre elas …

Dizem que, se não for assim, a “Justiça” não funciona … É o chamado “jeitinho brasileiro”. Falam em impunidade, com os presídios superlotados… Se a polícia cumprisse 15% dos mandados de prisão já expedidos, seria um verdadeiro caos em nosso país …

Talvez tudo isso seja resultante mesmo de uma certa dose de cinismo … Precisamos de menos corporativismo. Precisamos de uma “nova ética social”. Corrupção não se combate apenas com polícia e condenações penais, sendo necessário que os agentes públicos sejam exemplos de retidão e comportamentos absolutamente corretos.

Seria melhor que todos se unissem e se rebelassem contra este “faz de conta”, denunciando estas mazelas à sociedade. Aqui estou dando a minha modesta e isolada contribuição.

Acho também que a culpa destas “distorções” é de uma lei que ninguém consegue revogar, qual seja, A LEI DO MENOR ESFORÇO …

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Afranio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente em Direito Processual Penal (Uerj).