“Nosso salário não é reajustado há anos. Ver juízes como privilegiados é dramático”, diz juíza francesa ao DCM. Por Willy Delvalle

Atualizado em 9 de agosto de 2018 às 14:55

 

Esta entrevista foi ao ar em fevereiro e está sendo republicada por motivos óbvios.

Isabelle Reghi, juíza aposentada na França

De Paris

A Justiça é um reflexo da sociedade. É o que pensa Isabelle Reghi, 71 anos, presidente da Associação Francesa dos Juristas Democratas e juíza aposentada. Ao longo de sua carreira, em tribunais de diferentes cidades da França, no Ministério da Justiça e também como procuradora da República, ela conta que tentou combater a lógica do Judiciário, que, para ela, é um sistema da classe dominante.

Mesmo adepta da discrição e desconfiança em relação à imprensa, ela me recebe em seu apartamento para conversarmos sobre o auxílio-moradia de juízes no Brasil, que será discutido em março no plenário do STF. Contrariando o perfil de muitos magistrados, ela vive num bairro modesto de Paris, o 20º, que tem mais a cara da França contemporânea e suburbana do que a França imaginada pelos turistas.

Um lugar onde vivem muitos negros e árabes, assim como gente de diversas outras nacionalidades. Em sua sala, há grandes quadros, muitos livros e uma escrivaninha com uma revista sobre filosofia e outra sobre mídia e sexismo. Nesta entrevista para o Diário do Centro do Mundo, ela diz o que pensa sobre os salários, privilégios, as concepções de judiciário na França e no Brasil e o julgamento do ex-presidente Lula.

DCM – A senhora me disse que não gosta muito de fotos. Isso me surpreendeu um pouco, tendo em vista que no Brasil há juízes e membros do Ministério Público que dão entrevistas sobre os casos que estão analisando ou vão analisar, que gostam muito de serem fotografados, que são super ativos nas redes sociais, que comemoram seu número de seguidores “contra a corrupção”. Não gostar de fotos é uma característica particularmente sua ou é parte da deontologia da profissão?

Isabelle Reghi – O problema é na relação entre a magistratura e a imprensa, que sempre teve uma história um pouco tumultuada. Eu aprendi na escola de Direito que quanto menos a gente fala à imprensa, melhor é o nosso comportamento, pois há o segredo de Justiça, há também a proteção da vítima. Por uma série de razões, há sempre uma desconfiança em relação à imprensa, em relação aos jornalistas. Mas esse quadro começou a mudar há uns dez ou 15 anos. Nós, sobretudo os procuradores, aprendemos a nos portar em relação à imprensa, a fazer coletivas de imprensa, a aceitar ser fotografados etc.

É verdade que há muitos magistrados, sobretudo do Ministério Público, que não detestam ser fotografados, entrevistados. Esse é o aspecto visível. Há também um aspecto talvez invisível: quando os juízes julgam membros da classe política. Já houve relações com jornalistas oficiosas para fazer saírem na imprensa alguns casos. Evidentemente que os juízes devem manter o segredo de Justiça. Eles não devem a princípio dizer nada. Mas a gente sabe bem que alguns juízes que se deixam levar e vão além do que deveriam na relação com a imprensa.

E como a senhora avalia esse tipo de relação?

Eu sou da velha Escola. Eu não gosto muito disso. Não apenas os juízes devem manter segredo de Justiça, mas também os advogados. Os acusados não. Eles sim podem dizer muita coisa aos jornalistas, ao contrário dos juízes. Não é fácil observar o segredo de Justiça. Mas ele é feito para proteger o acusado e a vítima.

Ele é respeitado na maior parte dos casos?

Cada vez menos. Sim, para os casos pequenos. Mas quando os acusados são políticos ou grandes empresários, é bem menos.

No Brasil, o juiz Sérgio Moro vazou para a imprensa um áudio de uma conversa entre a presidenta Dilma Rousseff com o ex-presidente Lula. O áudio foi gravado pela Polícia Federal sem autorização do Supremo Tribunal Federal. Ele, um juiz de primeira instância, vazou um áudio com a autoridade máxima do Poder Executivo. Qual a sua avaliação sobre esse tipo de medida?

(Alguns segundos de silêncio) De uma certa maneira, eu poderia compreendê-lo porque aqui casos assim são complicados, há luta de poderes entre polícias e os juízes têm vontade que esses casos sejam exitosos. Mas às vezes eles podem escolher caminhos um pouco perigosos, que lhe parecem necessários. Eu nunca julguei esse tipo de caso. Logo, é um pouco complicado falar sobre. Mas obter êxito significa que não haja nenhuma dúvida quanto à prova de culpabilidade. Então esses juízes se veem entre o desejo de êxito e a necessidade de respeitar o procedimento do começo até o fim. O exemplo que você cita, eu posso compreender, mas me incomoda completamente. Se o procedimento legal não foi respeitado, então é algo que não se pode aceitar.

Ele argumenta que vazar esse tipo de áudio à imprensa é uma forma de combater a corrupção. Esse tipo de argumento lhe parece pertinente?

(Suspiro) Não são os juízes que devem lutar contra a corrupção. Eles devem julgar e fazer com que a corrupção seja julgada. A partir do momento que há muitas condenações, podemos chegar a menos corrupção. Mas os problemas políticos devem ser resolvidos na política, pelos partidos, sindicatos e ONGs talvez. Não acredito que seja missão de juiz fazer guerra.

Você mora num bairro modesto e diverso em termo de pessoas. Isso corresponde ao perfil dos juízes na França ou é uma exceção?

Não é totalmente uma exceção, mas tampouco é a maioria. A maioria dos meus colegas é de origem burguesa, abastada, e mora em bairros nobres. Há um certo contingente de origem não muito burguesa e não vai ser o salário que vai torná-lo burguês. Falo dos juízes em geral, não do topo da hierarquia. É possível encontrar pessoas como eu, que não vive no luxo.

Por escolha?

Sim, acredito.

E por que essa escolha?

(Silêncio seguido de suspiro) Quando eu estava na magistratura, eu fechei um pouco os olhos sobre a origem dos magistrados, seu comportamento, sobre a instituição judiciária. Desde que me aposentei, há três anos, me dei conta que na França e também em muitos países a Justiça é um reflexo do sistema em que vivemos. Vivemos num sistema de classe. E a Justiça é uma justiça de classe. Por isso, sempre tentei não ser da classe dominante. Nunca quis.

O Poder Judiciário na França e em muitos países é um meio privilegiado, da classe dominante?

Eu diria que para 60% a 70% dos magistrados, sim. Privilegiados e da classe que está ao lado do poder.

O Supremo Tribunal Federal do Brasil deve discutir em março o auxílio-moradia dos juízes, recebido mesmo por aqueles que possuem uma moradia na cidade onde trabalham. É o caso dos juízes Sérgio Moro e Marcelo Bretas, da Operação Lava Jato. Segundo o Senado, isso custou ao Estado mais de 280 milhões de reais em um ano. À imprensa, Moro disse que o benefício compensa o não aumento de salário. Benefício que faz a Receita Federal deixar de arrecadar quase 360 milhões de reais anuais. Como é esse quadro na França e o que pensa do caso brasileiro?

Só uma pequena parte dos magistrados têm uma moradia fornecida pelo Ministério da Justiça. São, por exemplo, os presidentes dos tribunais. Mas nós, não. Todos os funcionários públicos recebem um auxílio-moradia, não apenas os magistrados. Esse valor varia de acordo com a cidade onde moram. Em Paris, o valor é um pouco maior do que em Poitiers, por exemplo. De todo modo, é um auxílio muito pequeno.

De quanto?

Posso procurar minha folha de pagamento?

Claro!

Porque eu não me lembro – vai procurar a folha e a traz em alguns minutos. Meu salário bruto é de 4.898 euros (aproximadamente 19.500 mil reais). E o auxílio-moradia é de 146 euros (em torno de 580 reais). Extremamente baixo (risos). Há sempre a ideia de que é preciso que os magistrados sejam bem pagos e ajudados para que eles não tenham a tentação de se corromper. Mas até onde se pode ir para que eles resistam à corrupção (risos)? Eu não sei. Por outro lado, eu não conheci nenhum magistrado corrupto na França.

Se na França, o auxílio-moradia não chega a dez por cento de um salário mínimo (1.480 euros), no Brasil o valor corresponde a 4,5 salários mínimos. O que pensa sobre ?

Por que se faz isso? Um dos juízes que você citou diz que “é para compensar o baixo salário dos juízes”. É isso?

Para compensar o não aumento.

O não aumento… Pode ser, não sei. Se o salário dos magistrados não tem aumento há muito tempo, talvez haja compensações justas. Na França, ele está estagnado há anos e não tivemos nenhum tipo de auxílio suplementar. Ao contrário. É preciso saber também: todos os magistrados recebem esse auxílio no Brasil?

Eles podem escolher receber ou não. Mas levantamentos mostram que a maioria escolhe receber.  

Sim (risos). Pra dizer “não” a esse tipo de coisa, é preciso muito rigor. O problema é, e isso me preocupa muito, o olhar do cidadão nesse momento sobre os magistrados, que um dia talvez vão julgá-lo. Vê-los como privilegiados ou extremamente privilegiados é dramático. Então é preciso saber como o restante da população no Brasil, se considera esses valores normais.

No Brasil, essa questão virou uma polêmica. Além do salário e do auxílio-moradia, há férias de 60 dias, auxílio-alimentação, auxílio-saúde, carro com motorista, frutas no gabinete e café da tarde. Um levantamento do DCM mostra que em todas as regiões do país há salários acima do limite previsto pela Constituição, que deveria ser o que ganha o presidente da República. Um juízes recebeu em um mês, no ano passado, mais de 400 mil reais. Uma pesquisa aponta que os juízes ganham 12 vezes mais do que a renda média do brasileiro. O caso francês é semelhante?

(Riso) Não. Nosso salário é calculado, de todo modo, em relação à função pública. Somos funcionários públicos. O máximo que um magistrado pode ganhar, acima ou abaixo da hierarquia, é, mesmo com benefício, 8.600 euros (aproximadamente 34.400 reais). É o limite máximo. É fato que é mais do que ganha um deputado, que ganha em torno de cinco ou seis mil euros (24 mil reais), no total. Mas é menos do que o presidente da República. O salário médio de um magistrado é seis mil euros. Ele começa em torno de 2.600 euros (10.400 reais). Não há salários mirabolantes. É a função pública. Ou seja, eles não podem ganhar mais do que qualquer pessoa.

Então não há a possibilidade de que, com benefícios, o valor supere o teto previsto pela Constituição?

Não. A Constituição não fala em salário de juízes. O limite é previsto pela Lei da Função Pública. Não conheço nenhum caso de magistrado que tenha ultrapassado o teto. Não há.

Há benefício de carro com motorista?

Carro com motorista é para presidente de tribunal de recursos e grandes tribunais, assim como procuradores desses mesmos tribunais. Mas isso vale só a partir de determinado nível da hierarquia. E isso vale para toda a função pública, não só para os magistrados.

Que outros benefícios estão inclusos nesse salário?

Não há. Temos a seguridade social como qualquer funcionário público… Não há nada além. Há “primes”, valores que são distribuídos de forma desigual, supostamente de acordo com o mérito. Mas isso é feito de acordo com o freguês. Alguns ganharão mais porque têm mais “primes”. Porém sempre dentro do teto da função pública.

Li artigos falando em disparidade entre o salário de juízes e professores, dizendo que os últimos são preteridos em relação aos primeiros, quando o esforço para serem aprovados em concurso público é o mesmo. Essa disparidade provoca debates ou polêmica na França?

Não. De fato os professores são muito mal pagos. E são os mais mal pagos da União Europeia. Uma vez mais, eles fazem parte da função pública, no mais baixo nível da hierarquia, enquanto os juízes podem chegar aos níveis mais elevados. Mas nunca houve um debate sobre (a disparidade). Há uma ideia de que a função pública na França é igualitária. Ela é desigual na carreira. Há evidentemente mais facilidades para fazer carreira mais rápido em determinadas funções do que em outras. E por todos os lugares, entre homens e mulheres. Os homens têm mais facilidade para fazer carreira do que as mulheres. Há aqueles que farão de tudo para fazer carreira, mostrar eficácia, aparecer (risos) para seus superiores e subir de nível. Nem todo mundo chega ao “mérito”, mesmo que trabalhe bem. Algumas pessoas terão mais facilidades, em detrimento de outras.

Em 2016, a Justiça de Curitiba censurou 10 reportagens de um jornalista que fazia críticas à Operação Lava-Jato. Como é a relação entre o Judiciário e a imprensa hoje? E o que você pensa sobre esse tipo de censura?

Eu sou totalmente contra censura. Eu não compreendo a censura. Eu penso que há outras formas de combater as ideias que se contestam. Se as ideias contidas nessas reportagens eram tão criticáveis, era necessário liberá-las e criticá-las depois. Mas não censurar. O que é curioso é que a imprensa aqui na França não ataca verdadeiramente o magistrado. E, de um certo modo, eu diria que isso parece normal. Por quê? Porque, para uma boa parte, as decisões de magistrados são decisões de classe. Os jornalistas também estão no círculo de poder. Então tudo isso “vai bem”. E não é a imprensa que denuncia o magistrado. São associações e organizações, como as associações de defesa dos estrangeiros, que iam em todas as audiências em que estrangeiros eram julgados e denunciavam os “a priori” dos tribunais e os publicavam em seus sites.

Bretas e Moro na première do filme da Lava Jato

No Brasil, a mídia é polarizada. Há a grande mídia e a mídia alternativa. O jornalista que foi censurado (Marcelo Auler) faz parte da mídia alternativa, que critica a Lava-Jato. Por outro lado, a grande mídia é favorável aos métodos dessa operação. Essa dinâmica se enquadra na sua explicação?

(Silêncio) Sim e não. O que você descreve é uma operação a priori anticorrupção, o que deve ser favoravelmente percebido. Então é bom que a imprensa, de modo geral, defenda essa operação, mas se há jornalistas da mídia alternativa que pensam que há críticas a fazer, é preciso que possam criticar com toda a liberdade. Se eles acreditam que têm elementos para isso, para dizer que a princípio está correta (investigação da corrupção), mas há problemas (na Operação), é preciso dizer. Eu sempre penso que a contradição, a crítica, o conflito são elementos essenciais de uma democracia. Senão não há democracia. Se todo mundo sempre concorda, isso significa que há um problema. É bom que haja críticas.

Uma pesquisa mostra o Judiciário do Brasil como um dos poderes mais caros do mundo. Como avalia o caso francês em relação aos outros países da Europa e, se possível, do mundo?

Do mundo, não posso falar. Não sei. Mas da União Europeia, há estudos que mostram que somos uma magistratura de poucos recursos, muito pobre. Somos poucos magistrados, se comparados à Alemanha, à Itália ou à Espanha. Somos possivelmente menos bem pagos. E o orçamento da Justiça é um dos mais baixos da União Europeia.

Por quê?

Eu me pergunto em que medida isso não se explica pela história da França. Há sempre uma desconfiança em relação ao poder da Justiça. Tanto que não falamos em Poder Judiciário. Falamos em autoridade judiciária. Não há Poder da Justiça. Sempre houve medo do governo de juízes. Todos os políticos, sejam de esquerda ou de direita, sempre tiveram medo e desconfiaram do governo dos juízes.

O que seria o governo dos juízes (da toga)?

Seria quando os juízes decidem tudo, têm a possibilidade de interpretar uma lei, então é necessário reduzir o poder de interpretação da lei, senão os juízes serão superpoderosos. Então há um medo do superpoder dos juízes, uma vontade de reduzi-lo ao máximo. De enfraquecê-los.

Isso teria vindo da Revolução Francesa, do Período do Terror?

Sim, em parte sim. Penso que, no caso da França, há uma razão histórica para explicar a relação entre a Política e a Justiça.

Quais são as consequências para uma democracia que os juízes seja uma classe privilegiada?

É uma consequência muito negativa. Porque, para mim, o juiz é aquele que deve estabelecer ao máximo o equilíbrio. Porque uma democracia é uma história de equilíbrio. Se há ricos de um lado e pobres do outro, é preciso tentar restabelecer o equilíbrio. Esse é o trabalho da Justiça, sua missão. Se os que fazem a justiça só forem privilegiados, não têm consciência do que os outros vivem. Então, não podem julgá-los em termos de conhecimento de causa.

Qual o seu pensamento sobre a condenação em segunda instância do ex-presidente Lula? Há uma polarização em torno, entre os que comemoraram a decisão e os que dizem que o julgamento foi político, sem provas de sua culpabilidade.

Me parece que podemos legitimamente nos questionar sobre essa condenação. Infelizmente, na França, as informações de países estrangeiros, mesmo de países tão relevantes como o Brasil, são muito reduzidas. Então, às vezes temos dificuldades para refletir sobre. Tendo em vista as acusações de corrupção contra o presidente Michel Temer (que não avançaram), eu não li a decisão, mas a impressão é de um julgamento muito político.

Quer dizer que no caso de Temer, há evidências, mas que no caso de Lula houve um julgamento político?

De um lado, há um governo comandado por um Temer, suspeito de corrupção, e do outro, um justiça que condena um ex-presidente dessa maneira. Me parece que é um julgamento mais político.

Quais são as consequências para uma sociedade quando os juízes fazem um julgamento político?

É uma confusão total. Mesmo se dissermos que aqui na França não há Poder Judiciário e sim uma autoridade judiciária, ela deve se manter independente, a independência de todo tipo de pressão política. Se ela estiver envolvida demais com o aspecto político, não há mais Justiça. Também há casos de condenações que manifestamente foram políticas. Num dado momento, os magistrados não sabem se distanciar de suas próprias opiniões políticas, de sua situação social. Não julgam mais da maneira mais imparcial possível.

Você teria outras considerações a fazer?

Quando eu era magistrada, eu realmente acreditei que eu podia efetivamente restabelecer o equilíbrio, tomar partido do fraco contra o forte, tentar fazer uma balança. Eu acreditei que podia fazê-lo. Depois, percebi que a Justiça não pode estar fora da sociedade. Ela é o que a sociedade é. Ela é um espelho da sociedade. Quando a sociedade é, como na França e imagino que também no Brasil, desigual, a Justiça é desigual. Eu lamento muito não ter percebido isso antes. Percebi muito tarde que meu trabalho foi um pouco inútil.

É forte dizer isso…

Sim. Eu não teria dito isso dez anos atrás. Com a idade, o pessimismo vem, sobretudo quando se vê o estado da sociedade e do mundo.