Novo documentário sobre a Lava Jato desmistifica a Curitiba “cidade modelo” e expõe seu lado higienista

Atualizado em 25 de agosto de 2019 às 13:18
“A Contra-República de Curitiba”. Foto: Divulgação

‘Curitiba, a república do contra’ também seria um título cabível ao novo documentário de Carlos Pronzato.

O cineasta argentino, autor de mais de 70 documentários sobre revoltas populares e causas sociais em toda a América Latina, está lançando “A Contra-República de Curitiba”, um filme sobre a instrumentalização do Judiciário na disputa política. Mas não só isso.

De maneira didática, Pronzato situa a Curitiba utópica das elites no contexto histórico do país e do golpe. A Lava Jato não ganhou musculatura ali à toa.

A cidade tida como modelo, é um caldeirão de desigualdades tal qual o restante do país. Antiga comarca de São Paulo, possui bolsões de pobreza extrema e cidadãos excluídos do cotidiano usufruído pelos descendentes de europeus cujos sobrenomes estão no poder há mais de um século.

Lá está preso Lula, mas também lá há uma vigília em defesa do ex-presidente desde o primeiro dia de sua detenção. Ali Pronzato fez questão de apresentar seu filme pronto.

Após rodar por São Paulo em pré-estreia, o documentário será apresentado na Associação Brasileira de Imprensa do Rio de Janeiro na próxima quarta-feira (dia 28). O diretor conversou com o DCM:

DCM: Como foi rodar esse documentário no berço da Lava Jato?

Carlos Pronzato: Fazia tempo que vinha maturando a ideia de fazer um filme sobre isso. Tenho um projeto chamado “Golpe” em desenvolvimento, e também estava coletando algo para falar sobre o impeachment, mas vi que muita gente já estava rodando filmes sobre o tema. Daí veio a possibilidade quando vieram as revelações do The Intercept.

O documentário se propõe investigar os impactos que a denominada República de Curitiba causou e causa na política nacional. Um dispositivo político fundamental à partir da instalação da Lava Jato.

Curitiba é o cérebro desse projeto conservador e reacionário vigente no Brasil. Uma cidade que já conhecia por ter feito outros dois filmes lá sobre educação, um deles sobre a repressão de Beto Richa contra professores. Tenho trânsito com militantes de lá e isso facilitou um pouco.

O procurador de Justiça Rodrigo Chemim é o único entrevistado a dar depoimento favorável à força-tarefa. Ninguém mais aceitou gravar?

Procurei contatos de dentro da Lava Jato, mas depois fui eu que desisti. O propósito é mostrar a resistência que está sendo feita lá, a resistência contra a tal ‘república de Curitiba’. Mantive a fala dele – que dá um depoimento importante – até porque ele mesmo faz ressalvas à operação sob o efeito dos vazamentos revelado por Glenn Greenwald. Não é um direitoso raivoso.

Como sua estada foi na vigília Lula Livre?

Lá foi o primeiro local onde fiz a projeção do filme depois de pronto. Tinha certeza de que precisava ser lançado ali, em frente à sede da Polícia Federal. Conheci a vigília quando a ideia do filme ainda estava em fermentação. Lá eu saberia se o filme tinha uma mensagem equilibrada, pois há críticas ao PT e precisava passar por aquele crivo. E minha alegria foi saber que acharam ótimo.

Vários de seus filmes se desdobram sobre os mesmos temas em locais e épocas diferentes, chegam inclusive a inspirar movimentos posteriores como foi o caso dos estudantes secundaristas no Chile e no Brasil ou a Revolta do Buzu na Bahia e depois o Passe Livre em São Paulo. Como vê a guinada à direita mundo afora?

Estamos imersos nesse fluxo e é impossível prever o que acontecerá, pois a cada dia a bolha aumenta. Está complicado porque não estou vendo freio, não estou vendo obstáculos que a esquerda ou até mesmo os grupos auto organizados poderiam estar colocando. É um momento de recuo e parece que estamos esperando pela faísca.

Por que acredita que estamos anestesiados?

Quando fiz o filme sobre a morte de Mestre Moa do Catendê comecei a perceber que aquilo não seria uma coisa isolada. Percebi que o que viria pela frente seria pior. O documentário se chama ‘Mestre Moa, a primeira vítima’ e agora vemos as subsequentes, vemos que estão ocorrendo várias, todos os dias. Ontem mataram bolivianos aqui no centro.

A alegria do governador carioca na morte do rapaz lá do ônibus mostra que essa turma veio tocar a sensibilidade comportamental. Está influindo uma negatividade interna, que é nossa, mas algo que vem à tona de maneira terrível pelos governantes que incentivam isso.

Quando se fala que quem matou Mestre Moa foi Bolsonaro, digo que foi mesmo. Tem muita gente adoecendo e eu acho isso insólito.

Para onde estamos indo, depende de nossa mobilização.

A “guerra cultural” como estratégia é uma das características do fascismo…

Estão restringindo as atividades didáticas. Fiz o documentário sobre a Escola Sem Partido ainda em 2016, na esteira das ocupações das escolas. O filme ficou meio esquecido assim como o projeto estava esquecido, ele é antigo. Mas Bolsonaro fez esse projeto ganhar força novamente. Essa intromissão no campo cultural é estratégica, claro. A ebulição, de estudantes principalmente, amedronta esse governo.

Os períodos de repressão, paradoxalmente, costumam ser terreno fértil para criatividade artística. O cinema hoje é quem está falando mais alto, com diretores e atores fazendo filmes e protestos em festivais?

O cinema está na linha de frente pela imagem, é um reflexo dos tempos de espetacularização que vivemos. Meu processo é rápido e mesmo o cinema hoje é rápido também. O filme Marighella do Wagner Moura vai sair agora e é muito importante que seja agora mesmo.

Fiz um documentário sobre ele que é de 2011 e hoje mais gente sabe quem é Marighella. É preciso manter esse espírito da resistência.
Fazer esses filmes, para mim, é uma questão de saúde, um trabalho psicológico. Estamos vivendo sob um presidente que é pior da história desse país, talvez do continente. Trabalhar contra ele a favor da vida, da resistência, com minha arte é o que posso fazer.

Faz algum paralelo com a Argentina hoje?

Esse ‘gestor moderno’ chamado Macri pelo menos não tem os ingredientes, os tons de bestialidade que temos aqui. É um cara mais preparado. Porém as medidas econômicas dos dois são similares: destruir as conquistas trabalhistas do último século.

Mas aqui é pior pelo racismo, pela antipatia com tudo que seja popular. A grande diferença é essa, os grupos que estão no comando do Brasil estão em franco ataque contra a diversidade e lá isso não se vê nessa forma institucionalizada, nem nessa dimensão.

As falas de Bolsonaro e seu vice sobre as questões indígenas, sobre negros, sobre meio ambiente, desde a campanha, são inacreditáveis. Nunca aconteceu isso na Argentina, nem com Carlos Menem que talvez seja pior do que Macri. O certo é que a esquerda vai voltar lá.