O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação é parte do processo educacional brasileiro, mas pode fazer ver o seu todo no futuro breve. Para tanto, a parte e o todo exigem uma leitura muito mais pedagógica do que econômica da PEC 15/2015 (Deputada Raquel Muniz e outros parlamentares) que modificou artigos da Constituição Federal de 1988.
O todo a ser visto pelas comunidades educacionais do Brasil não pode se restringir ao econômico porque desde 2007 o Fundeb cumpre o seu papel de fundo solidário com base em recursos arrecadados pelos entes federados. Sua receita total naquele ano foi de 46,9 bilhões de reais, distribuídos entre Estados/Municípios/DF (44,9) e 2 bilhões da União a título de complementação. Em 2010 o governo federal entrou com 5,4 bilhões e coube a municípios e estados garantir ao fundo 78,3 bilhões, o que totalizou 83,6. No ano de 2015, quando a PEC 15 foi formulada, o Fundeb gastava com a educação pública dos estudantes entre a educação infantil e a de nível médio 132,2 bilhões, com a entrada de 10,9 do governo central. A estimativa feita pela Confederação Nacional de Municípios (e a própria portaria do MEC) para 2020 foi de 173,7 bilhões, considerado o montante de 157,9 dos Estados e Municípios.
Tratou-se, pois, de uma conta crescente, que reconheceu as dificuldades e carências de alguns Estados brasileiros e localizou sua preocupação principal no custo anual das crianças, adolescentes e adultos que voltaram a estudar. Embora não se tenha tido um melhor estudo pedagógico do custo dos estudantes, sabe-se que entre 2019 e 2020 o valor aproximado de 3.600,00 ficou próximo do que custou cada um/uma no ensino fundamental urbano. A partir daí há variações regionais e locais que refletem o país. Por exemplo (indo às fronteiras das diferenças), em 2015 um estudante do ensino fundamental do Maranhão custou 1.632,98, enquanto o valor mínimo nacional foi de 3.091,64 e o Estado de São Paulo pagou 4.064,00 reais (1). O fundo teve e terá de considerar a diferenciação regional do Brasil profundo; melhor dizendo, suas desigualdades há muito conhecidas, ainda mantidas e a exigir complementações solidárias, em que são indesejados os antigos preconceitos e estereótipos, que nada de bom resultaram na história.
Este quadro de referências não foi central para a construção da PEC 15 e sua aprovação em 21 de julho deste ano pandêmico. Tanto o país tem limites em arrecadação (especialmente as pessoas e famílias) quanto o fundo solidário destinou o que pôde, especialmente Estados, Municípios e DF. Espera-se o pior a partir deste ano, pois o problema tributário poderá sobreviver a uma inteira geração, o que é homólogo à dor, ao desemprego e ao empobrecimento, fenômenos exacerbados pela ausência de um governo federal da altura do Brasil e suas urgências.
Fosse central o fenômeno econômico-financeiro, como acentuou a relatora, Deputada Dorinha Rezende, a PEC seria postergada para tempos melhores. Portanto, o projeto nacional de educação deve criar, com a urgência devida, um novo lugar de fala e ação.
De fato, parte da justificativa criada pelos proponentes da PEC em 2015 (com anterior e posterior oitiva nacional de pessoas e instituições) busca configurar o que se denomina eixo metonímico e a visão do todo:
[…] O Fundeb representa a aplicação plena do princípio da solidariedade, essencial ao federalismo cooperativo, modelo de organização do Estado adotado pelo Brasil. (…) a consagração do princípio da proibição do retrocesso em matéria educacional e a faculdade aos entes federados que assim optarem, no âmbito de sua autonomia, de incluir na conta do Fundeb os recursos provenientes da participação no resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural. No caso da União, estes podem ser importantes para financiar, eventualmente, a complementação ao piso salarial dos profissionais da educação […]
A parte cria a representação do todo a partir de agora. Na educação brasileira, termina o ciclo do Estado somente provedor e avaliador circunstancial, alienante, que durou desde 1989, para o desejado encontro das comunidades criadoras de currículos e políticas com o Estado brasileiro, em cujo coração está o seu povo. O que, aliás, foi proposto pelos Pioneiros da Educação Nova em 1932 e em parte vivido (infelizmente) nas experiências das ilhas educacionais do país. O que também ocorre é que, agora, todo o povo, abatido pela agrura da pandemia, tem o dever inovador de aprender cidadania e apreender o sentido maior da educação nesse movimento de mudança.
O que está a dar-se é que, à parte as novas obrigações do ente federal, o que contou na iluminação dos educadores e educadoras, deputados e deputadas, além do pessoal que pesquisa em ciências humanas e da natureza, de setores do funcionalismo público e de associações que lutam pela educação, é a introdução de uma qualidade social no ato de educar e ensinar no Brasil, tanto vista no uso dos recursos para valorizar os profissionais dos profissionais quanto nas novas atribuições das comunidades educacionais do pais. Como mostraram de modo excelente as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica do CNE, Conselho Nacional de Educação (dede o final dos anos de 1990), tal valorização e tal qualidade passam a ser obrigação e dever das escolas e seus entornos sócio-políticos, vivos e ativos no mundo urbano, no rural, nas periferias, nos espaços indígena, ribeirinho, migrante, quilombola; idem nas formas de educação inclusiva, na EJA e nos processos de educação para o trabalho.
Repita-se: oxalá a pandemia e sua precariedade didática remota aguçaram e revelaram o sentido educacional da família, o que não tem nada a ver com homeschooling, visto que os seres sociais crianças e jovens gostam muito da boa escola, sua alegria e seu intercâmbio de saberes sociocognitivos.
A partir da aprovação da PEC pelo Senado da República e sua regulamentação será possível dizer o que antes fora um ideal: quando uma comunidade educativa construir um belo currículo pleno, no interior de um PPP ( Projeto Político Pedagógico) estará vivenciando a nação brasileira; a parte fará ver o todo. A Base Nacional mais a Diversidade de Saberes ( que é o currículo pleno) não somente trarão o país para o interior do debate escolar, mas principalmente projetarão as unidades escolares como planificadoras, realizadoras e avaliadoras da nação que educa.
Uma longa história de alienação e de imposições deverá chegar ao fim, não exatamente porque se aprova o Fundeb permanente com novas inversões federais, mas porque o fundo cria o rosto de uma frente de luta contra as mais inculturais (para lembrar Osman Lins) tradições do Brasil: a perpetuação da mesmice, a sucessão do provisório, a alienação do chão escolar e sua gente, a política distante do cotidiano vivido. Nesse movimento, terão muito a aprender os burocratas das instâncias de governo, os produtores e aplicadores de avaliação massiva (abaixo o Ideb único!) e as organizações sociais privadas a serviço da educação. Ninguém comandará as comunidades educacionais do Brasil diverso; ao contrário, será necessário aprender com elas e trabalhar ao lado delas, suas necessidades e desejos.
Entrevista nas mudanças propostas pela PEC, a qualidade social tem sido debatida há décadas por sindicatos e associações de profissionais da educação e sempre esteve presente na pesquisa científica e nas assembleias das CONAEs. Para essas têm ido milhares daqueles e daquelas que conhecem o “chão da escola”. Pois a qualidade social está sutilmente posta no interior da mudança do artigo 193 da CF. Lê-se:
Parágrafo único. O Estado exercerá, na forma da lei, o planejamento das políticas sociais, assegurada a participação da sociedade em sua formulação, acompanhamento contínuo, monitoramento e avaliação periódica.”
O complemento integra o projeto maior:
[…] tornar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb – instrumento permanente de financiamento da educação básica pública, incluir o planejamento na ordem social e inserir novo princípio no rol daqueles com base nos quais a educação será ministrada (…)
Surge o novo. Inscrever o Fundeb na ordem social o retira do espaço burocrático e o introduz nas relações sociais, nas quais as comunidades educativas e as organizações da sociedade compartilharão o debate do fundo, desde seus levantamentos econômico-financeiros até o seu significado educativo na ponta da linha onde professores e estudantes comungam as ações do aprendizado na construção também compartilhada do conhecimento.
Em linguagem freireana, os que fazem educação no Brasil encontrarão na inserção das mudanças nos artigos da CF um valor inédito e viável. Nada menos do que isso deve ser a bandeira da mudança. Educar é provocar mudanças.
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1 Em 2015, no interior do debate que construiu a PEC 15, os especialistas do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação apresentaram o acúmulo histórico do Fundeb (2007-2015) na Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, então presidida pelo autor deste texto.
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Luiz Roberto Alves é professor e pesquisador sênior da ECA-USP. Professor da educação básica e pública entre 1968 e 1988. Estuda as relações entre educação, cultura e comunicação social. Membro do CNE entre 2012 e 2016.