“Nunca mais”: Tribunal condenou por tortura seguranças de supermercado que chicotearam adolescente negro

Atualizado em 24 de novembro de 2020 às 21:16
Davi de Oliveira Fernandes e Waldir Bispo dos Santos tiveram prisão decretada com a condenação. Foto: Reprodução

Após protestos antirracistas por conta do assassinato no Carrefour, a 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou por tortura os seguranças que chicotearam um adolescente negro flagrado tentando furtar barras de chocolate de um supermercado em São Paulo.

Em agosto do ano passado, os seguranças Valdir Bispo dos Santos e David de Oliveira Fernandes abordaram o adolescente com as barras de chocolate e o levaram para uma salinha do supermercado, na zona sul da cidade.

Tiraram a roupa do adolescente, o amarraram e o amordaçaram. Em seguida, o açoitaram com fios elétricos trançados. Um deles gravou a cena e ainda divulgou na internet.

Na primeira instância, a Justiça condenou os dois por lesão corporal, mas os absolveu do crime de tortura.

No julgamento de hoje, a desembargadora Ivana David, relatora do recurso, entendeu que a tortura estava caracterizada.

De acordo com ela, após deterem o adolescente, os seguranças deveriam tê-lo apresentado às autoridades competentes, como a polícia civil ou a polícia militar.

Em vez disso, submeteram a vítima a “intenso sofrimento físico e mental”, praticando dolosamente o delito de tortura.

A magistrada destacou também que “não há como negar a imposição de sofrimento moral e mental resultante da divulgação das imagens – estas a evidenciar por si sós o imenso abalo emocional causado à vítima, exposta nua e amordaçada, desbordando em muito do mero castigo e da humilhação já infligidos e resvalando no sadismo e na pedofilia, indicando-se desprezo pela condição humana”.

Davi de Oliveira Fernandes e Waldir Bispo dos Santos tiveram prisão decretada com a condenação. Foto: Reprodução

O caso teria passado impune se o advogado Ariel de Castro Alves, do Conselho de Direitos Humanos do Estado de São Paulo, não tivesse se empenhado para que o adolescente fosse localizado a partir das imagens divulgadas, um mês depois.

O adolescente foi ameaçado de morte pelos seguranças e tinha medo de falar.

Ariel também é do Grupo Tortura Nunca Mais. Quando soube das imagens, ele esteve no 80º Distrito Policial de São Paulo e conversou com policiais, que localizaram o adolescente, e Ariel acompanhou seu depoimento.

Depois, ele pediu ao Conselho Tutelar da Cidade Ademar para que o jovem fosse encaminhado para um abrigo, e incluído em um programa de proteção aos adolescentes.

No final do ano passado, ele deixou o programa e foi viver com os irmãos.

Hoje, ao saber do resultado do julgamento, Ariel comentou:

“Enfim, foi concretizada a Justiça nesse caso, e a lei 9455 de 97, que define os crimes de tortura foi devidamente aplicada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. O menino foi colocado nu, depois amarrado, amordaçado e chicoteado, além das ofensas e ameaças dos agressores. Se isso não fosse considerado tortura, o que mais seria então? Diante da decisão anterior da Vara Criminal, os dois condenados já sairiam da prisão nos próximos meses de dezembro e janeiro. Com a nova decisão do TJ, eles ficarão mais tempo presos. A decisão nesse caso emblemático e de grande repercussão pode inibir novos casos cruéis e desumanos semelhantes a esse, que infelizmente ocorrem com frequência em estabelecimentos comerciais, praticados por seguranças, e também em ações policiais.”

A condenação dos seguranças foi por unanimidade. Votaram com a relatora os desembargadores Camilo Lellis e Edison Brandão.

O supermercado Ricoy, onde ocorreu a tortura, deveria ter sido acionado na esfera civil. O Ministério Público deveria tentar um termo de ajuste de conduta, para que o estabelecimento passe a contratar profissionais treinados para fazer a segurança sem desrespeitar direitos humanos básicos.

Veja o vídeo da tortura. As imagens são fortes: