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Por Marcelo Auler
Ao conceder, estrategicamente, na véspera do domingo de Páscoa, uma liminar permitindo a abertura de templos religiosos, o ministro novato Kassio Nunes Marques certamente agradou ao presidente que o indicou para o cargo vitalício, mas chocou-se frontalmente com seus colegas de plenário no Supremo Tribunal Federal (STF).
Sua decisão provocou, de imediato, um posicionamento do ministro Gilmar Mendes que, sem citar nomes, deu decisão oposta, apontou a incoerência do colega e provocou o debate em torno da questão na próxima sessão plenária da corte – quarta-feira (07/04).
Muito provavelmente, o “novato” será alvo de uma nova “espinafração humilhante e arrasadora”, tal como definiu Eric Nepomuceno em Bajulação indecente a granel. Uma referência à sessão da Segunda Turma da corte, de 22 de março passado, quando, ao comentar o voto do colega que não reconheceu a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro, Mendes advertiu que “não há salvação para o juiz covarde”.
A “espinafração” na realidade, começou na decisão proferida na segunda-feira (05/04) por Mendes nos autos de duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) – a 810 e 811 – de sua relatoria. Tratam da mesma questão: o fechamento dos templos religiosos. Mas têm como alvo um decreto do governador de São Paulo, João Dória.
Novato contrariou seu próprio voto
Ao justificar os motivos que o levaram a rejeitar a ADPF 810 interposta pelo Conselho Nacional de Pastores do Brasil – CNPB, o ministro lembrou que o plenário do STF, por unanimidade, em 22 de fevereiro passado (logo, com o voto de Nunes Marques) rejeitou outra ADPF por não ver legitimidade em entidades como o CNPB. Citou, especificamente, o caso da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE. A mesma autora da ADPF 701, de junho de 2020, na qual Nunes Marques, no sábado, deu a decisão que agradou evangélicos e bolsonaristas. Ou seja, Nunes Marques admitiu uma ADPF de entidade que a própria corte, com o seu voto, considerou não ter legitimidade para esse tipo de arguição.
Mendes não precisou nominar o colega nessa sua “espinafração” inicial, que provavelmente terá sequência na sessão desta quarta-feira:
“Importa destacar que no julgamento em questão o Tribunal negou provimento ao Agravo POR UNANIMIDADE. Ou seja, todos os ministros deste STF afirmaram, em uníssono, que Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE não pode ser considerada ‘entidade de classe’, para fins de propositura de ADPF.” (grifos do original)
A sabujice de Nunes Marques chegou ao ponto de, na decisão proferida calculadamente sábado, contrariando duas decisões anteriores da corte, ele se alinhar à retrógada tese bolsonarista. Atropelando o entendimento de seus dez colegas de plenário do STF que conferiram a governadores e prefeitos o direito de decretarem medidas restritivas de circulação e reunião de pessoas, o “novato”, recorreu aos argumentos do presidente que vira e mexe fala em estado de exceção e descumprimento da Constituição. Ao atender ao pedido da ilegítima ANAJURE, argumentou:
“A proibição categórica de cultos não ocorre sequer em estados de defesa (CF, art. 136, § 1º, I) ou estado de sítio (CF, art. 139). Como poderia ocorrer por atos administrativos locais? Certo, as questões sanitárias são importantes e devem ser observadas, mas, para tanto, não se pode fazer tábula rasa da Constituição.”
Nunes Marques ainda teve a preocupação de, na madrugada do domingo de Páscoa, zelar pelo cumprimento do que decidira. Intimou oficialmente o prefeito de Belo Horizonte (MG), Alexandre Kalil (PSD), que ameaçara ignorar a decisão. Fato que, por si só, demonstra uma “autoridade” contestada, diante de uma decisão controversa.
O prefeito respaldava-se, acertadamente, na decisão do plenário do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341. Ao julgá-la, há cerca de um ano (15/04/2020), os ministros, por unanimidade, consideraram que no enfrentamento do coronavírus há competência concorrente dos entes da Federação para impor restrições sanitárias, na esteira da Lei n.º 13.979. Logo, decretos e decisões tanto dos prefeitos como dos governadores devem ser respeitados.
Reclamação antiga, ficou oito meses parada
O ministro novato ainda tentou realçar a “relevância da matéria constitucional suscitada” e destacar uma “urgência alegada”, para justificar sua decisão no sábado. Ele havia adotado “o rito do art. 5º, § 2º, da Lei n. 9.882/999, para que os órgãos e autoridades responsáveis pelos atos impugnados pudessem se pronunciar”.
Mas não explicou que o pedido da ilegítima ANAJURE, impetrado em 22 de junho de 2020, combate decretos municipais exarados ainda no início da crise sanitária. Muitos deles, inclusive, já revogados.
Distribuída ao ministro Celso de Mello, a ADPF 701 ficou parada até novembro quando foi redistribuída a Nunes Marques. Apesar da “relevância da matéria” e “urgência alegada”, realçadas pelo ministro na decisão de sábado, a ADPF voltou para as prateleiras do seu gabinete onde permaneceu sem ser tocada até 10 de fevereiro. Foi quando ele solicitou informações a sete prefeituras e aos governadores do Piauí e Roraima sobre os decretos emitidos, alguns, como já se disse, então revogados.
Após receber informações de algumas prefeituras – os prefeitos de João Monlevade (MG), Macapá (AP), Serrinha (BA), Rio Brilhante (MS) e Armação dos Búzios (RJ), bem como os dois governadores não se manifestaram – o relator, no dia 23 de março, abriu prazo de cinco dias para a manifestação da Advocacia Geral da União (AGU) que o atendeu em 30 de março.
Assinada por Fabrício da Soller, Advogado-Geral da União Substituto, e por Izabela Vinchon Nogueira de Andrade e Maria Helena Martins Rocha Pedrosa, o documento revelava a ilegitimidade da ANAJURE para impetrar uma ADPF, mas se mostrava favorável à abertura dos templos. Nesta mesma data foi aberta vistas para a Procuradoria Geral da República (PGR), teoricamente de cinco dias.
Na pressa, Nunes Marques atropelou seus prazos
A pressa de Nunes Marques era tamanha que sequer respeitou os prazos por ele mesmo estipulado. Não esperou a manifestação da PGR. Preferiu utilizar “emprestado” o pronunciamento de Augusto Aras na ADPF 811, impetrada em 19 de março. Nela, o Partido Social Democrático – PSD tenta impugnar o art. 2°, II, a, do Decreto nº. 65.563, de 12.3.2021, do Estado de São Paulo. Ele veda a realização de cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo. Mesmo pedido feito pelo Conselho Nacional de Pastores do Brasil – CNPB na ADPF 810, apresentada ao STF na véspera (18/03).
Nas duas ADPFs seus pretendentes tentaram levar as ações impetradas para a relatoria de Nunes Marques. Propuseram uma distribuição por prevenção citando expressamente a ADPF 701. Mas a própria distribuição do STF não levou em conta a prevenção indicada pois as novas ações buscavam impugnar ato diverso da ADPF anteriormente impetrada. Enquanto estas visavam o decreto do governador João Dória, de São Paulo, aquela impugnava decisões de prefeitos e outros governadores.
Mendes, como relator das duas ADPFs, buscou inicialmente ouvir os interessados. Em 26 de março, abriu prazo de dez dias para que o governo paulista se manifestasse. Somente depois a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República seriam ouvidas, sucessivamente, no prazo de 5 dias. A comunicação ao governador João Doria ocorreu por meio de ofício no dia 29 de março (quinta-feira). Logo, o prazo para que ele se manifestasse ultrapassaria em muito o domingo de Páscoa.
Aras, na expectativa de ficar bem com Bolsonaro – certamente de olho na próxima vaga no Supremo Tribunal Federal – e com evangélicos, precipitou-se anexando manifestação na ADPF 811. Pelo despacho de Mendes, ele deveria falar nos autos depois que o governador e a AGU o fizessem. Demoraria, portanto, no mínimo 15 dias.
Nesta ação, em que não era parte, a Procuradoria Geral da República atua na condição de “custos legis“, ou seja, como guardião da lei, fiscal da sua correta aplicação. Para tanto, o correto seria aguardar as explicações do governo paulista até para analisar seus fundamentos. Mas Aras preferiu atropelar este pequeno – ainda que fundamental – detalhe processual. Antes mesmo de ser intimado, às 21H13min. da quarta-feira, 31 de março, lavrou seu posicionamento. Obviamente contrário ao fechamento dos templos, apesar de toda a situação caótica que São Paulo – e quase todo o país – vivenciava com o crescimento vertiginoso no número de infectados e a falta de leitos hospitalares.
Na sua manifestação, desprezando os aconselhamentos técnicos de médicos, cientistas e estudiosos no assunto, e muito provavelmente de olho no domingo de Páscoa, embora sem expor tal festividade, ele, sem conhecer os argumentos e dados do governo de São Paulo, defendeu que as reuniões presenciais poderiam ocorrer em segurança, desde que seguidos os protocolos estipulados. no domingo de Páscoa, embora sem expor tal festividade, ele, sem conhecer os argumentos e dados do governo de São Paulo, defendeu que as reuniões presenciais poderiam ocorrer em segurança, desde que seguidos os protocolos estipulados:
“(…) há de ser assegurada a realização de cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo no Estado de São Paulo, observados os protocolos já estabelecidos para cada matriz religiosa, ou de outros que vierem a ser estabelecidos na forma do art. 3º, § 1º, da Lei 13.979/2020, como medida adequada e suficiente não só para garantir a saúde física, como também a saúde mental e espiritual da população em momento de agravamento crônico da epidemia da Covid-19 no Estado de São Paulo e em todo o território brasileiro.” (grifo do original).
Foi seguido pelo Advogado Geral da União, André Luiz Almeida Mendonça, outro que não tira o olho da vaga do Supremo imaginando tornar-se o “ministro terrivelmente evangélico” que Bolsonaro prometeu, em julho de 2019, indicar para o STF. Mas não o fez quando a vaga de Celso de Mello foi aberta.
Mendonça apresentou manifestação que corrobora as posições de Bolsonaro ao ser favorável ao funcionamento dos templos. Levou-a à ADPF 811 na quinta-feira, dia 1 de abril, bem antes do prazo estipulado e sem conhecer os argumentos do governo paulista.
Gilmar Mendes desmonta tese do “novato”
Como relatado acima, o ministro Gilmar Mendes, ao despachar nas duas ADPFs sobre sua relatoria – 810 e 811 – não demonstrou pressa em apreciá-las. Tanto que abriu prazo de dez dias para o governo paulista se manifestar, desprezando a proximidade da Páscoa. Mas acabou mudando de posição, na segunda-feira (05/04), diante da decisão do ministro “novato”, proferida sábado de Aleluia.
Além de apontar a incongruência de o ministro novato admitir uma ADPF de uma instituição que ele, junto com todos os demais ministros da corte, em fevereiro, considerou ilegítima para tal feito, Mendes rebateu a tese de que a restrição imposta por governadores e prefeitos colide com o direito à liberdade de culto religioso previsto na Constituição.
De pronto, ao rejeitar a declaração de inconstitucionalidade do decreto do governo de São Paulo, mostrou também que o “novato” atropelou o que o plenário da Corte decidira, em abril de 2020. Relembrou que a decisão de então foi provocada pelo descaso do governo federal com a pandemia e que, de certa forma, a corte apoiou as restrições de circulação. Em sua decisão, expôs:
“assentou-se de forma clara e direta que todos os entes federados têm competência para legislar e adotar medidas sanitárias voltadas ao enfrentamento da pandemia de Covid-19. Assim o fez o STF levando em consideração pretensões do governo federal de obstar os Estados e Municípios de adotarem uma das poucas medidas que por comprovação científica revela-se capaz de promover o achatamento da curva de contágio do coronavírus, qual seja o lockdown – talvez a única disponível num contexto de falta de vacinas. A pretendida obstrução em desfavor dos entes subnacionais seria realizada mediante uma concentração, na figura do Presidente da República, da definição de atividade essencial”.
Demonstrou também que a própria Constituição não garante que a liberdade de realização de cultos coletivos é absoluta. Lembrou que o inciso VI do art. 5º, assegura “o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei” (grifamos). Respaldado nesse trecho, Mendes explicou: “essa reserva legal, por si só, afasta qualquer compreensão no sentido de afirmar que a liberdade de realização de cultos coletivos seria absoluta.” Em seguida, acrescentou:
“Como já tive a oportunidade de esclarecer no âmbito doutrinário, a lei deve proteger os templos e não deve interferir nas liturgias, ‘a não ser que assim o imponha algum valor constitucional concorrente de maior peso na hipótese considerada’. (MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 15ª Edição. São Paulo: IDP/Saraiva, 2020, p.323)”.
Sem deixar de analisar a situação atual do país, ressaltou a necessidade de medidas restritivas para “preservar a capacidade de atendimento da rede de serviço de saúde pública”, ao explicar:
“a simples observância da média móvel de mortes e de casos de contaminação no Estado de São Paulo no período compreendido após a promulgação do Decreto estadual impugnado não deixa dúvidas sobre o gravíssimo cenário que subjaz às restrições impostas.
Enquanto em 11.03.2021, o Estado de São Paulo atingia a marca histórica de 2.233 (duas mil duzentos e trinta e três) mortes somente naquele dia, no dia 01.04.2021, o estado bateu o recorde de 3.769 (três mil setecentas e sessenta e nove) mortes diárias pelo novo Coronavírus. (Fonte: JHU CSSE COVID-19 DataJHU CSSE COVID-19 Data)”.
Destacou ainda a caótica situação da rede de saúde em todo o país, notadamente no Estado de São Paulo, lembrando que “além da escalada do número de mortes, o Estado vive um verdadeiro colapso no sistema de saúde” e acrescentou:
(…) Em um cenário tão devastador, é patente reconhecer que as medidas de restrição à realização de cultos coletivos, por mais duras que sejam, são não apenas adequadas, mas necessárias ao objetivo maior de realização da proteção da vida e do sistema de saúde.”
De todo este episódio o que sobressaiu foi o interesse maior de Nunes Marques, Aras, e Mendonça não em prevalecer a saúde pública e o bem maior da população, mas de agradar a Bolsonaro, bolsonaristas e, notadamente, evangélicos. É verdade que há católicos que também se posicionam de forma parecida, mas não se tem notícia de bispos ou instituições da igreja católica tentando impedir a medidas de restrições de circulação impostas na tentativa de se conter a dissimulação do vírus.
O mais prejudicado neste episódio, aparentemente, será o ministro novato. Ao colidir de frente com a posição da maioria do STF, Nunes Marques ficou marcado. Algo que deverá transparecer na sessão plenária desta quarta-feira (07/04) quando Mendes levará sua decisão para apreciação por toda a corte. A tendência é que sofra nova “espinafração humilhante e arrasadora”, como prevista por Nepomuceno. Resultado do que ele próprio cavou. A partir de então, só o tempo mostrará sua capacidade e jogo político para modificar essa situação entre seus pares. Tempo não lhe faltará. Afinal, com 48 anos, tem pela frente duas décadas e meia com direito a sentar-se naquele plenário.