O abismo entre Rosângelas e Fernandas

Atualizado em 26 de agosto de 2019 às 10:52

 

Rosangela Moro e Fernanda Young

Ontem perdemos uma grande mulher, justamente nesses tempos em que andamos tão cansados de perder – nossos direitos, nossa liberdade, nossa cultura, nossa floresta.

Fernanda Young era escritora, roteirista, colunista, dramaturga, mãe, filha, disposta e corajosa, uma criatura que não cansava de se espantar e transformar isso em arte.

“Se quiserem me calar, vão ter que me matar”, escreveu recentemente.

E como fazem falta as mulheres que não se calam (Marielle, presente), embora a gente saiba tão intimamente que elas permanecem vivas em seus legados.

Fernanda era sobretudo uma mulher que acreditava no que escrevia – isso que comumente chamamos de autenticidade. Suas crônicas preferiam a crueza às boas maneiras, e seu maior interesse parecia ser sempre dizer o que precisava ser dito. O que ela precisava dizer – que foi, tantas vezes, o que a gente também precisava dizer.

Uma grande perda para a dramaturgia, mas sobretudo pra todas nós que assistimos – embora não passivamente – à completa distorção de nosso lugar político e social nesse Brasil de Rosângelas. E justo agora.

Justo agora que o Presidente da República, um misógino declarado que nos considera frutos de fraquejadas, ostenta como troféu uma esposa trinta anos mais jovem e ofende a primeira dama francesa por ser uma mulher sexagenária.

Justamente nesse momento em que mulheres como Rosângela Moro, primeira-dama da República de Curitiba, prestam desserviços a si mesmas ao construírem seus personagens anti-feministas com picuinhas superficiais que explodem em likes enquanto o circo pega fogo.

“Sorry, feministas”, ela escreveu no Instagram ao informar a todos (mas quem liga?) que preparara um jantar para o marido.

Oi? Alguém conta pra essa senhora que negar-se a dividir um prato de sopa quentinha com o parceiro não faz parte do conceito de feminismo, mesmo que o parceiro em questão seja Sérgio Moro.

Aliás, ferindo propositalmente o conceito deturpado dessa palavra cafonérrima que “sororidade” se tornou, não me puno ao pensar: nem toda mulher merece o sangue e o suor da nossa luta.

Porque há as Fernandas e há as Rosângelas.

As Rosângelas – que também poderiam ser chamadas de Marcelas – estão casadas com homens como Sérgio Moro e Bolsonaro. São as que topam serem exibidas como troféus, mesmo sabendo que serão trocadas como chicletes mascados quando já não servirem à única tarefa que os homens aos quais se submetem lhe permitem: o papel decorativo. Topam porque é confortável, é fácil e garante uma vaguinha na primeira classe.

São as que preferem que as coisas nunca mudem, simplesmente por não estarem dispostas à luta. As que se distraem com futilidades porque não têm coragem de encarar o que interessa. As que já perderam a capacidade de compreenderem-se como seres autônomos e políticos.

Já as Fernandas estão por aí, divertindo gente e chorando ao telefone. São as que trabalham, pagam seus impostos, criam seus filhos com honestidade e retidão, dedicam-se com alma ao seu trabalho, implicam-se em lutas coletivas, escrevem, vão ao supermercado, explodem sua catarse e ainda encontram tempo pra dar colo aos filhos e cuidar de quem amam.

Ninguém precisa ser anti-feminista pra cuidar: cuidar é um estado intrínseco de quem sabe amar, e isso só depende de ideologia pra quem não sabe. A grande diferença, na verdade, é que as Fernandas questionam seu tempo enquanto preparam uma sopa – e isso, meus amigos, não é pra qualquer uma.

Os bons morrem antes.

Justo agora que nunca precisamos tanto de Fernandas vivas.