O ataque de Lula aos fetiches fiscais. Por J. Carlos de Assis

Atualizado em 29 de outubro de 2023 às 9:39
Fernando Haddad e Lula em aperto de mãos
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente Lula. Foto: Ricardo Stuckert

 

Acabou a fantasia do “arcabouço fiscal”. O presidente Lula deu-se conta, finalmente, de que para o Brasil retomar efetivamente um ciclo de desenvolvimento sustentável não pode ficar prisioneiro das travas artificiais do superávit primário ou do equilíbrio fiscal. Isso é conversa de gente do mercado financeiro, que sustenta seus argumentos sobre inflação em bases subjetivas, como “expectativas racionais”, e não na realidade do mercado real, que reflete oferta e demanda objetiva no mercado.

O presidente não é economista. Aceitou as projeções macroeconômicas de Fernando Haddad pela conveniência do momento, pois era óbvio que o Congresso conservador e dominado pelo neoliberalismo não aceitaria um plano econômico mais ousado. Agora chegou a hora da verdade. Ou o país encara a realidade  dos déficits primários, que de forma alguma comprometem a estabilidade econômica, e de fato contribuem para o desenvolvimento, ou terá de se subjugar aos fetiches do mercado.

Quando foi lançado o tal “arcabouço fiscal”, reagi com sobriedade, dizendo que era o plano possível no momento, diante da realidade parlamentar. Agora que Lula abriu o debate verdadeiro é fundamental encarar os fatos. Ou o Congresso aceita uma política fiscal favorável ao crescimento econômico sustentável, ou terá de arcar com as consequências de um desastre econômico “argentino” no Brasil. Vou me dispensar de repisar argumentos. Segue-se, abaixo, o que escrevi recentemente, antecipando Lula:

“Não é o monetarismo do sabotador Campos Neto, isoladamente, a grande trava da economia que Temer e Bolsonaro legaram ao presidente Lula, para impedir a retomada do nosso desenvolvimento e retomarem o controle político do país em algum momento no futuro.  Pior é a política fiscal. Os fetiches do equilíbrio orçamentário, do superávit primário e do teto de gastos são restrições similares aos juros altos, ou ainda piores, para a retomada da economia.

Jair Bolsonaro e Roberto Campos Neto. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom

É fato que, no primeiro semestre deste ano, o PIB apresentou taxas de crescimento razoavelmente  satisfatórias. Trata-se, porém, de uma impressão falsa. Esse crescimento derivou sobretudo da recuperação do setor de serviços e da expansão e aumento da exportação do agronegócio, da mineração e  da extração de petróleo – portanto, produtos primários -, não da indústria de transformação ou da infraestrutura, mais empregadora. Nesse caso, estamos patinando.

O que tem travado a economia, além das altas taxas de juros, são as armadilhas constitucionais colocadas por Temer e Bolsonaro no caminho de Lula, ou de qualquer outro eventual presidente progressista que viesse a ser eleito depois deles. Estamos pagando o preço da política fiscal-monetária mais restritiva jamais imposta a um país ao longo das últimas décadas, principalmente depois da crise da dívida externa. Embarcamos, desde então, no que chamo de “economia da especulação”.

A crise da dívida externa acabou. Porém, não os seus efeitos em termos de política fiscal. A cartilha que o FMI e o Consenso de Washington nos impuseram para enfrentá-la praticamente eliminou nossas possibilidades de crescimento. Isso se deu em função dos juros e das restrições orçamentárias que têm impossibilitado o Estado de cumprir seu papel histórico, no Brasil, como realizador de investimentos de infraestrutura e de indutor dos investimentos privados, nessas e em outras áreas.

Para pagar as tranches da dívida externa, o FMI condicionou seus próprios empréstimos, de taxas de juros um pouco mais baixas que as de mercado – porém, insuficientes para nossos compromissos -, a que recorrêssemos ao sistema bancário privado,  a fim de complementá-los. Isso deu total liberdade aos banqueiros para impor  juros exorbitantes de sua preferência. Dessa forma, num ambiente de taxas de juros internacionais altíssimas, entramos na “economia da especulação”.

A forma saudável de pagar a dívida externa seria pelo aumento da produção de bens e serviços e a conversão em dólares de seu excedente em relação à demanda em moeda interna. O monetarismo explícito na ideologia do Fundo impediu isso. Por sua cartilha, o excedente deveria ser gerado pelos cortes reais na demanda interna, inclusive nos gastos públicos, e não pelo aumento da produção. Quanto a esse, por sua vez, estava severamente reprimido pela alta taxa de juros e pela política fiscal.

Essa combinação de fatores restritivos travou a economia brasileira desde o governo FHC, com curtos intervalos de algum crescimento nos governos Lula. De fato, sem estímulos do Estado e com taxas de juros elevadas, mergulhamos no ciclo da “economia da especulação”, sempre apegados ao fetiche de cortar a demanda privada interna e a demanda do Estado, para evitar inflação e garantir com isso a estabilidade inflacionária da economia. Com o “arcabouço fiscal”, continuamos nessa situação.

E não se trata sequer de restrições recentes. Uma outra, mais antiga, remonta à aprovação da própria Constituição. Seu artigo 166 torna sem limites o compromisso com o pagamento da dívida pública. Qualquer sobra no orçamento aprovado que eventualmente ocorra na sua execução é automaticamente transferida para o pagamento da dívida, sendo vedada sua aplicação em destinações do orçamento primário,  seja de investimentos, sejam sociais. Só para o primário há limites.

Tenho sustentado que para superar essas restrições o único recurso é apelar para um papel mais ativo do Banco BRICS nos empréstimos para os países emergentes, médios e pobres. Com isso, se romperia a armadilha do crédito privado caro estimulado pelas agências da ONU, FMI e Banco Mundial, transitando-se da “economia da especulação” para uma “economia de produção”. Ainda mais importante seria romper com as políticas fiscais a que esses países, inclusive o Brasil, estão sujeitos.

Dilma em reunião com membros do Brics, órgão que preside. Foto: Reprodução

Os fetiches fiscais – equilíbrio orçamentário,  superávit primário e teto de gastos – derivam diretamente do monetarismo. A ideia subjacente é que o combate à inflação e a defesa da estabilidade monetária dependem de fatores subjetivos, como as expectativas de inflação e de taxa de juros futuras na órbita financeira, que influenciariam a evolução dos preços. Isso é a negação da objetividade científica na economia, baseada nas clássicas leis de oferta e procura.

A inflação efetiva dos preços, desde Adam Smith, é o efeito da procura de bens e serviços reais acima de sua oferta, ou da oferta inferior à procura. Isso constitui uma verdade óbvia para qualquer um que frequenta uma feira. Dizer que o preço do pão francês subiu na padaria por causa do aumento do déficit público é uma empulhação absurda que só uma imprensa subordinada aos interesses dos financistas e do grande capital pode difundir. No entanto, esse é sua narrativa corrente.

O principal fator que explica o recurso demagógico a esses fetiches – fora os interesses do mercado financeiro – é o desconhecimento básico da natureza e das funções da moeda. Na sua essência, a moeda moderna é uma criação soberana do Estado cujo valor é reconhecido pelos cidadãos por causa do tributo que lhe é imposto obrigatoriamente junto com ela, e com que ela deve pagá-lo. Obviamente, não tem nada a ver com um padrão de valor, mesmo simbólico, como ouro ou prata.

Nesse sentido, o Estado pode emitir livremente moeda, desde que com a respectiva tributação. O que ultrapassa o que recebe pelo pagamento de impostos serve  ao  financiamento da circulação de bens, serviços e ativos financeiros privados do conjunto da economia.  Entretanto, se emitir num valor acima do que corresponde ao total da circulação monetária, pública e privada, sem que esse excedente não se baseie em mais produção, haverá inevitavelmente um efeito inflacionário.

O mesmo acontece na órbita privada. O sistema bancário privado também cria moeda, à semelhança do Estado, e a expansão dela, igualmente fundamental para o crescimento da economia, depende de bons projetos financiáveis, particulares ou públicos. Em qualquer hipótese, o objeto do financiamento tem que garantir retornos seguros, pois, do contrário, é inflacionário.

O meio de evitar a inflação é o planejamento, público e bancário. O Estado deve planejar a produção, através de projetos responsáveis, juntamente e de forma compatível com a emissão de moeda nova. Com isso se evita a inflação e, ao mesmo tempo, garante-se o crescimento econômico sustentável. Além disso, como segurança contra a inflação, o investimento estatal de infraestrutura, a longo prazo, deve ser compatibilizado com o investimento na produção de bens básicos a curto prazo.

É que o investimento de infraestrutura gera demanda de bens e serviços básicos de curto prazo, sendo que seus resultados como oferta só aparecem no longo prazo. Diante disso, o planejamento público direto e o investimento privado estimado devem  assegurar que a oferta dos bens básicos acompanhe sua demanda crescente. Dessa forma, demanda e oferta globais  se equilibram, ao mesmo tempo em que o crescimento do produto total é assegurado, sem efeitos inflacionários.

O que estou dizendo é uma síntese da Economia Monetária Moderna, baseada na teoria de Finanças Funcionais de Aba Lerner. Esse economista norte-americano, na época da fundação do FMI, perdeu, junto com o britânico John Keynes, a luta por um sistema monetário de estímulo à produção. Lerner formulou magistralmente essa teoria que apenas em anos recentes começa a ser recuperada por economisstas progressistas em alguns países do mundo, inclusive nos Estados Unidos.

No Brasil, fui pioneiro na introdução de Finanças Funcionais mediante a tradução de um livro do economista norte-americano L. Randal Wray, a que dei o título de “Trabalho e Moeda Hoje”. Esse livro sustenta a compatibilidade entre pleno emprego e estabilidade inflacionária, com base nas teses de Aba Lerner. Trata-se, fundamentalmente, de um contraponto essencial à “economia de especulação” financeira estimulada pelo FMI entre os países que lhe caem nas garras.

Entendo que a principal missão do Banco BRICS, hoje, seria difundir a Teoria Monetária Moderna entre seus associados emergentes, além de outros países em desenvolvimento. Para isso, lhe caberia levantar um debate ideológico em torno do assunto, para confrontar as teses e as práticas do FMI. Entretanto, essa estratégia só teria eficácia se, contrariamente ao FMI, o novo Banco ancorasse suas recomendações de política econômica numa prática de juros baixos.

Não ignoro a imensa dificuldade para uma virada dessa dimensão nas políticas econômicas que estão difundidas hoje na maior parte dos países, por causa da influência prática ou ideológica do FMI.O Brasil é o melhor exemplo. A política fiscal-monetária regressiva, oriunda dos “conselhos” do Fundo e do Consenso de Washington, estão  inscritas na própria Constituição. Só podem ser alteradas por maioria qualificada do Congresso, atualmente dominado por forças retrógradas.

Seria necessária uma grande mobilização social para que, nas próximas eleições, fosse alterada a composição da Câmara e do Senado. A precondição para isso seria um sucesso absoluto de Lula em sua gestão. Contudo, a gestão de Lula, enquanto durar o “arcabouço” fiscal, encontrará tremendos obstáculos para se firmar no rumo de um crescimento acelerado. Com isso, não há garantia para que o atual Legislativo evolua para posições mais progressistas no plano fiscal.

Note-se que, para acomodar o orçamento fiscal nos fetiches constitucionais herdados dos governos anteriores, o “arcabouço” proposto por Haddad recorreu ao artifício de apoiar a retomada do crescimento, a taxas razoáveis, numa reforma tributária, cuja base seria elevação dos impostos com o aumento relativo da tributação sobre os ricos. Se não houver esse aumento, o Estado terá de cortar gastos. E o fato é que, nos últimos três meses, houve queda, e não aumento dos tributos.

As tratativas informais do Congresso, e as intrigas da imprensa, indicam que ruralistas e conservadores em geral não aceitarão facilmente o aumento dos tributos sobre os ricos. Nessa situação, não apenas a política “fiscal-monetária” prevista na Constituição  puxará a economia para baixo, como não haverá compensação pelo  aumento de impostos, este previsto no “arcabouço”. Não acho que seja efeito apenas de pessimismo sem base visualizar imensas dificuldades para a retomada da economia.

Diante disso, a grande contribuição do Banco BRICS para a economia brasileira e mundial deve se dar tanto no plano ideológico quanto no plano prático. Nesse último caso, como disse, provendo empréstimos a juros inferiores aos de mercado para investimentos em produção. No plano ideológico, promovendo uma grande discussão planetária capaz de mobilizar consciências de todo o mundo para a necessidade de mudar radicalmente a natureza das políticas fiscal, monetária e tributária. “

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