O vigor da candidatura Bolsonaro é, antes de qualquer estratégia eleitoral, o triunfo da pátria do cinismo. De uma fatia do país formada por pessoas cuja defesa pública da moralidade e dos bons costumes é estuprada na vida particular com atos hostis à igualdade, às leis e ao bem-estar da coletividade.
A retidão exigida dos políticos e dos adversários é mera máscara de hipocrisia para parte desses eleitores monopolizar o mau-caratismo e exercitar a contradição entre um discurso crítico a desvios de comportamento e uma conduta impregnada de malfeitos.
O bolsonarismo se tornou espécie de atalho ideológico para os cínicos contornarem a incompatibilidade entre ser e parecer. Salvo-conduto para desonestos, criminosos, charlatões, puritanos e preconceituosos pregar aos outros valores descolados da própria realidade.
É o porto seguro moral para o ex-ator Guilherme de Pádua, assassino com 18 tesouradas da colega Daniela Perez, dar lições e cobrar sanidade – pasme! – a quem vê em Bolsonaro um racista. É a identificação partidária de Luis Manvailer, seguidor do “mito”, defensor dos valores da família e acusado de espancar e atirar a namorada do quarto andar de um prédio.
A inconformidade do eleitorado pudico com a exibição de “indecências” de mulheres com seios de fora, de manifestações de afeto entre gays, da insurgência feminina contra o machismo, não veda eleger deputado federal Alexandre Frota – ex-ator pornô cujas fotos em surubas cinematográficas fazem corar de espanto até os mais salientes.
A distorção, apregoa o bolsonarismo, é o outro. E qualquer contribuição da similaridade para fazer pensar se dissipa no cinismo da indiferença.
Seguidores do ex-militar indignados com a imoralidade da administração pública deram mandatos a Kim Kataguiri, líder da milícia “apartidária” MBL financiada pela direita, e Joice Hasselman, jornalista acusada de plagiar inúmeras matérias antes de ser demitida da Veja.
É a mesma linha de indignação paradoxal capaz de temer a “venezuelização petista” do Brasil e votar em um político profissional cuja história é marcada pelo apreço incondicional à ditadura militar.
De reclamar da falta de prioridade da educação no país e preterir um candidato professor, responsável por programas educacionais comprovadamente bem-sucedidos, em favor de um déspota desinformado cuja proposta para a área é afastar o aluno da escola e desmontar a cadeia de ensino.
De reivindicar a valentia de um governante e cegar para a covardia do candidato militar, escondido sob fraqueza emocional, vazio de ideias, pretexto físico e incapacidade de enfrentar o escrutínio público de um debate e as posições adversárias.
De repetir o slogan “Deus acima de tudo” e chancelar um entusiasta da tortura e da morte para quem infringe a lei – duas situações da via-crúcis enfrentada por Jesus, o messias supostamente adorado pelos fiéis de Bolsonaro.
A ética particular dos cínicos despreza a coerência natural e necessária entre o pensar e o agir – e fratura a convivência social e familiar, até então escorada na empatia mútua.
Pais, tios, avós e amigos bolsonaristas bradam pelo futuro da família e da comunidade enquanto compelem, por adesão ou omissão, filhos gays a se recolher ao armário, mulheres a naturalizar a submissão, negros a aceitar o preconceito – tudo sob a truculência psicológica das palavras de ódio de Bolsonaro e a violência física praticada pelos seguidores Brasil afora.
E de nada valem os relatos apavorantes sobre a suástica nazista na barriga de uma mulher, o mestre de capoeira petista assassinado, o travesti linchado no bar, a servidora pública espancada por bolsonaristas.
A corrente de WhatsApp relativiza a barbárie e afaga o cinismo com fake news a rodo e antipetismo suficiente para repelir aquele período do país no qual todos melhoraram de vida – mas se tornou dever odiar.
A essência do bolsonarismo, tudo indica, se lixa para a sociedade e os anseios do povo por um futuro mais digno. O bolsonarista de carteirinha parece querer uma fresta histórica para exercer, sem culpa, o direito de extravasar os instintos mais primitivos e legitimar os desmandos de uma realidade particular.
Ele quer, na verdade, traduzir a si próprio com uma corruptela do ídolo: minto.