O bolsonarismo quis a guerra, e agora terá que arcar com a derrota. Por Leonardo Mendes

Atualizado em 22 de fevereiro de 2023 às 1:23
Golpistas na rampa do Congresso Nacional. Foto: Reprodução

O filósofo alemão Carl Schmitt escreveu boa parte de sua obra durante a república de Weimar – o período logo após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra e a ascensão do nazismo ao poder – mas pode ser também ainda fundamental para entendermos o Brasil de hoje.

Schmitt foi um proeminente membro do partido nazista, mas também é considerado um dos maiores pensadores da filosofia política contemporânea, principalmente por sua contribuição à teoria da guerra. Não estávamos oficialmente em guerra no Brasil, mas, à luz de Schmitt, não seria exagero nenhum dizer que na prática sim, e a tentativa frustrada de tomada da estrutura física dos poderes constituídos em Brasília foi a batalha derradeira.

Os acampamentos golpistas foram desmontados, as forças de segurança prenderam os soldados da linha de frente, os comandantes e financiadores do golpe estão sendo caçados para responder à Justiça por seus crimes. Mas vamos antes a Schmitt, para tentar compreender melhor o que estava em jogo.

Para Schmitt, o fundamento da política se dá na relação amigo-inimigo, que difere em natureza de uma simples disputa ou conflito entre adversários, concorrentes, rivais… E a relação amigo-inimigo é aquela que em último grau pode nos levar à guerra. Que estabelece uma identidade fundamental entre os membros de determinado grupo, em relação ao qual os indivíduos exteriores são vistos como uma ameaça existencial a ser contida ou exterminada.

Por isso o bolsonarismo nunca foi um partido, clube, seita ou religião, categorias que não necessariamente estabelecem uma relação do tipo amigo-inimigo. O bolsonarismo é uma construção identitária que tem na guerra seu horizonte último e imprescindível, nos mesmos moldes do nazismo. Ele não reconhece adversários, mas apenas inimigos. É incapaz de debater propostas, de tentar chegar a acordos, de conviver civilizadamente com a diferença, com o Outro, a quem deseja destruir.

O ódio assim é o poderoso cimento dessa organização, destilado do medo existencial representado na figura ameaçadora do Outro, em si vazia de conteúdo. O Outro é todo aquele que o grupo não identifica como um deles. Costuma ser chamado pelo bolsonarismo de “comunista”, mesmo que se trate de um banqueiro bilionário.

O bolsonarismo sempre foi também profundamente covarde, no sentido de que teme algo que na realidade não representa nenhuma ameaça. Trata-se de um medo cultivado nos centros de desinformação e fake news, financiado pelos interesses econômicos de uma elite disposta a tudo para manter seus privilégios. Em certo sentido é uma arma biológica, que penetra em organismos mais suscetíveis até o ponto de os fazerem arriscar a própria integridade física, até então assegurada, em batalhas inglórias, como os ataques em Brasília.

Combater o bolsonarismo vai muito além então do combate aos tiozões patriotas da linha de frente. Por mais difícil que seja enxergá-los como vítimas, é isso o que a maioria ali sempre foi. Indivíduos solitários, ressentidos da própria insignificância, em profundo sofrimento psíquico e em busca de significado e pertencimento. Unidos pelo medo existencial que lhes foi introjetado por aqueles a quem enxergam como mitos salvadores.

Esses mitos, porém, os levaram foi até a cadeia, enquanto descansam nos braços de outros patetas, na Disney. Militares de pijama conspiraram do conforto de seus lares, movimentando à distância os peões patriotas no tabuleiro do golpismo. Bispos fundamentalistas e estelionatários alimentaram o delírio coletivo com propósitos bastante mundanos.

Todos precisam agora ser não só punidos, mas neutralizados. O bolsonarismo quis a guerra, e agora terá que arcar com a derrota. E isso exigirá um árduo trabalho coletivo em várias frentes: Justiça, educação, comunicação, saúde mental… Ou a guerra seguirá latente e pronta para eclodir em toda a sua violência, enquanto for mantida essa relação amigo-inimigo estabelecida pelo bolsonarismo.

Impressiona assim que parte daqueles que se identificam como esquerda gastem energia a combater aqueles que combatem a máquina de guerra bolsonarista, responsável por tantas mortes e sofrimento não só durante o negacionismo da pandemia. Talvez não tenham percebido o estado de guerra, e na Nuremberg de 1945 denunciassem também arbitrariedades no tribunal.

Mas não será nada simples encerrar essa relação amigo-inimigo, pois o bolsonarismo não sobrevive sem ela. Para Schmitt, na verdade a própria política não sobrevive sem esse tipo de relação, e o que podemos fazer é ressignifica-la. Oferecer outros conteúdos para preencher o vazio formal do inimigo. Não há paz que seja perpétua no realismo político contemporâneo. E a boa e velha luta de classes segue sendo o campo de batalha mais promissor. Antes, porém, precisamos do nosso tribunal de Nurembergue.

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Leonardo é catarinense, jornalista e escreve no blog Van Filosofia. http://filosofiavan.wordpress.com