O Brasil diante de uma eleição dramática. Por Boaventura de Sousa Santos

Atualizado em 22 de agosto de 2018 às 8:34
Urna

Publicado originalmente no Outras Palavras

POR BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa

Estão a acelerar-se as urgências típicas de um ciclo eleitoral que se vai prolongar entre o fim de agosto e o fim de outubro. Estas urgências são particularmente desafiadoras para as esquerdas brasileiras porque o seu principal candidato e, de todos o mais bem posicionado nas sondagens, está preso e pode vir a ser considerado inilegível.

As irregularidades óbvias do processo Lula da Silva têm tido alguns efeitos surpreendentes. A obsessão punitiva foi neste caso tão excessiva que o sistema judiciário degradou a sua imagem e a sua legitimidade, tanto nacional como internacionalmente, a um nível e com consequências que, por agora, são dificeis de avaliar. Por sua vez, a imagem política e humana de Lula saiu desta húbris político-judicial fortemente fortalecida e melhorada. Vítima de uma flagrante injustiça e, para muitos, um preso político – talvez o mais famoso preso político do mundo – Lula da Silva viu aumentar exponencialmente o seu crédito político e a sua popularidade junto das classes populares. Paulatinamente, os erros ou desacertos dos governos do PT por ele hegemonizados no período 2003-2016 foram sendo minimizados ou esquecidos — para o que contribuiu também o agravamento da crise econômica e a política de austeridade que entretanto desabou sobre as classes populares—e Lula da Silva foi-se consolidando como o pre-candidato de longe mais bem posicionado para ganhar as próximas eleições presidenciais. Isto, apesar de estar preso, não poder dar entrevistas nem gravar videos e ser muito provavelmente inelegível nos termos da “Lei da Ficha Limpa”.

Se objetivo político-judicial era destruir a imagem do ex-presidente, tudo leva a crer que a estratégia seguida pela elite conservadora falhou e foi mesmo contraproducente. Terá, no entanto, atingido com êxito o seu objectivo principal: retirar Lula da Silva da próxima contenda eleitoral e fazê-lo sem uma alteração qualitativa do regime político e sem níveis incontroláveis de perturbação social. Mas mesmo neste domínio o objetivo pode ter sido apenas parcialmente atingido. Resta a dúvida sobre a influência que o ex-presidente pode ter na escolha do próximo Presidente da República e na governação do país no próximo ciclo político. Para além deste fator de imprevisibilidade dois outros devem ser considerados: endurecimento geral do regime político; e as dificuldades de construção de hegemonia tanto à direita como à esquerda.

O endurecimento geral do regime político

Nos últimos meses o regime político endureceu consideravelmente. Aumentou a violência política de que a manifestação mais vísivel foi o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, em 14 de março deste ano. Para além disso, ocorreram outras execuções de lideres políticos locais, aumentou a violência contra lideres sociais sobretudo no meio rural, acentuou-se o verdadeiro genocídio de jovens negros e pobre das periferias urbanas, foi decretada a intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro com o pretexto da luta contra o crime organizado, têm vindo a ser perseguidos judicialmente professores e investigadores com acusações chocantes contra os resultados da sua pesquisa científica (por exemplo, no domínio dos efeitos danosos para a saúde pública decorrentes do uso irregular de agrotoxicos na agricultural industrial).

O golpe institucional que levou à destituição da Presidenta Dilma Rousseff em 2016, a prisão de Lula da Silva e a condução global da operação Lava-Jato têm vindo a consolidar um regime de exceção que, à semelhança do que tem ocorrido noutros países, parece ocorrer em suposta normalidade democrática. Sem mudar qualitativamente, o regime político tem vindo a acentuar os seus traços reacionários e autoritários. Tenho defendido que a democracia brasileira, já de si uma democracia de baixa intensidade, tem vindo a transformar-se numa democracia de baixíssima intensidade. Isto significa que o cará ter socialmente excludente e politicamente restritivo das liberdades democráticas se acentuou nos últimos tempos. Sem se transformar num regime ditatorial de tipo fascista, tem vindo a abrir espaço para forças políticas neofascistas, forças de extrema-direita que usam os instrumentos políticos que restam da democracia para fazer a apologia de práticas típicas da ditadura (apologia da tortura, justificação da violência extrajudicial contra populações pobres racializadas, retórica de violenta intolerância contra lideres políticos de esquerda, etc). A face mais visível desta pulsão neofascista é Jair Bolsonaro, militar na reserva, deputado federal. Depois de Lula da Silva é o pre-candidato a Presidente da República mais bem posicionado nas sondagens. Trata-se de um populista de extrema-direita tão mal preparado para dirigir o país e tão improvável como vencedor das eleições como era Donald Trump poucos meses antes das eleiçoes nos EUA em 2016.

Outros traços do endurecimento do regime político referem-se ao modo como se tem acentuado o protagonismo do sistema judicial em detrimento do Legislativo e do Executivo e à consequente judicialização da política. O Judiciário é hoje no Brasil o fator principal da insegurança jurídica que atinge todos e sobretudo as grandes maiorias que mais precisariam de um sistema judicial acessivel e comprometido com os objectivos constitucionais da defesa dos direitos civis, políticos, econômicos e sociais. Este endurecimento não se pode explicar sem considerar o papel da crise econômica, uma crise de rentabilidade do capital que impôs o fim da política de conciliação de classes que os governos do PT e muito particularmente Lula da Silva, tinham vindo a defender e a praticar (o chamado lulismo ou lulapetismo).

As elites dominantes, com o apoio ativo do imperialismo norteamericano e do capital financeiro global, estimularam (quando não provocaram) a crise financeira e política do Estado para impor uma versão mais agressiva do capitalismo, socialmente mais excludente e mais dependente da criação de populações descartáveis, na prática, sub-humanas, por via do recrudescimento da dominação colonialista (racismo, extermínio de jovens negros, colonialismo interno, violência contra os que lutam pela terra e pelo território, sejam eles camponeses, povos indígenas e afro-descendentes, populações ribeirinhas e piscatorias) e da dominação patriarcal (aumento da violência contra as mulheres, tantativa de liquidação das conquistas pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença dos anos mais recentes).

Esta foi a condição imposta pelas elites nacional e internacionalmente dominantes para não recorrer a um regime explicitamente ditatorial. Note-se que o contexto em que ocorreram os fascismos na Europa eram muito distintos. Tratava-se então de conter um movimento operário muito militante e muito organizado ou de neutralizar o “perigo” comunista. As ameaças à dominação capitalista eram então perecebidas como tendo uma dimensão existencial que não tem hoje. Pelo contrário, a dominação capitalista e colonialista parece hoje temer menos do que nunca possíveis inimigos. Conseguiu, pelo menos aparentemente, uma hegemonia por via da qual o slogan das esquerdas dos anos de1920 “socialismo ou barbarie” foi substituido pelo slogan “capitalismo ou barbárie”, ao mesmo tempo que as barbaridades cometidas pelo capitalismo se tornam cada vez mais evidentes e perigosas, atentatórias do mais elementar direito humano, o direito à vida, para nem sequer falar do direito à vida digna.

Dificuldades de construção de hegemonia tanto à direita como à esquerda

Historicamente, as forças políticas de direita sempre mostraram mais unidade nos momentos decisivos que as forças políticas de esquerda. Frequentemente, nem sequer tiveram de se preocupar em detalhar as condições da sua unidade porque contaram sempre com um apoio surpreendente para a conquista ou manutenção do poder político: a divisão entre as forças de esquerda. Esta assimetria não decorre de uma qualquer deformação intrínseca que impeça as esquerdas de fazer diagnósticos

corretos nos “momentos decisivos” e de contabilizar as perspectivas do médio prazo nas urgências da auto-preservação no curto prazo. Decorre antes de uma outra assimetria que é constitutiva das sociedades capitalistas e colonialistas em que vivemos desde que a opção (consensual) pelo regime político democrático deixou de poder contemplar a opção por um regime económico alternativo ao capitalismo, o socialismo. A partir de então, a direita, quando governa, detém o poder político, econômico e social, enquanto a esquerda, quando governa, detém o poder político mas não o poder econômico nem o poder social. Esta assimetria permite à direita ter, em geral, mais certezas nos “momentos decisivos”, por exemplo, a de manter intacto o poder econômico e social mesmo quando se vê obrigada a perder o poder político.

Pelo contrário, as forças de esquerda tendem a sobrestimar o seu poder quando estão no governo (como se o poder político acarretasse, por si, o poder económico e social) e a subestimá-lo quando estão na oposição (a perda do poder político é vista como perda total e convida a um refúgio em estratégias isolacionistas de sobrevivência partidária). Este desequilíbrio é fator de confusão e miopia oportunista nos momentos em que seria mais importante a clarividência de objetivos estratégicos hierarquizados.

No Brasil, esta assimetria é hoje mais visível do que nunca embora se devam ter presentes os antecedentes que levaram ao suicídio de Getúlio Vargas em 1954 e ao golpe militar dez anos depois. Na crise que se instaurou depois das eleições de 2014, a direita esteve sempre mais unida que a esquerda. No momento em que, devido à crise internacional, se apercebeu que o seu poder econômico estava em perigo, decidiu que, para o salvaguardar, seria preciso reconquistar em pleno o poder político, ou seja, pôr fim à política de alianças com os governos do Partido dos Trabalhadores que tinha mantido desde 2003. Daí, o golpe institucional que levou ao impedimento da presidenta Dilma Rousseff, à prisão atrabiliária de Lula da Silva e ao desmantelamento rápido e agressivo das políticas mais emblemáticas do periodo anterior. A facilidade com que a direita tirou do caminho o petismo mostra que o período anterior assentou num equívoco. O que para o PT era uma política de conciliação de classes mais ou menos duradoura, era para a direita uma mera política conjuntural de alianças. O ódio classista e racista que se propagou de imediato como gasolina incendiada é prova disso mesmo.

Mas também ficou evidente que a unidade das forças de direita era sobretudo uma unidade negativa, isto é, uma unidade para eliminar a presença do petismo da cena política. A unidade para construir uma alternativa positiva (a configuração específica das relações entre o poder político, o poder econômico e o poder social) teria de ter outro ritmo, o ritmo do ciclo eleitoral de 2018. Tomadas de surpresa (o que, em si, já é significativo), as forças de esquerda levaram algum tempo a reagir, tanto mais que já vinham divididas no que respeita à avaliação das políticas e das práticas da governação dos governos petistas. No entanto, os “excessos” da contra-reforma facilitaram a emergência de uma unidade entre as forças de esquerda, também ela uma unidade negativa: o consenso no repúdio do ritual sacríficial de que foi vítima Lula da Silva e, consequentemente, o consenso na campanha do “Lula Livre” e na reivindicação do seu direito a ser candidato no ciclo eleitoral de 2018.

O ciclo eleitoral está a entrar na sua fase decisiva e as assimetrias anteriormente anotadas estão, de novo, bem presentes. No que respeita à direita, muitos analistas salientam a falta de unidade positiva patente na ausência de um candidato óbvio à liderança política do próximo período político. Em meu entender essa análise está equivocada. A aparente falta de unidade é uma armadilha bem urdida para garantir que no segundo turno das eleições presidenciais seja decidida entre dois candidatos de direita. No momento em que isso ocorrer a direita saberá tornar claras as suas escolhas. A destruição do candidato rejeitado pode ser brutal.

A menos que as condições econômicas internacionais se deteriorem acentuadamente, optará por uma política conservadora sistêmica em detrimento de uma política de ultra-direita com uma pulsão anti-sistêmica. Obviamente que não está garantido que esta estratégia resulte plenamente. As dinâmicas da política do ressentimento atualmente em vigor podem soltar os demônios do populismo de extrema direita. De todo o modo, esta solução garantirá o principal, a congruência mínima entre o poder político democrático de baixíssima intensidade e o poder econômico e social de cariz particularmente excludente e repressivo.

No que respeita às forças de esquerda, à medida que se intensifica a lógica eleitoral, a falta de unidade positiva (para garantir uma alternativa politica minimamente de esquerda) torna-se cada vez mais patente. A lógica taticista de sobrevivência partidária a curto prazo domina e o paradoxo mais chocante a qualquer observador atento parece escapar às lideranças partidárias: o paradoxo de se apregoar a unidade das esquerdas no segundo turno e, ao mesmo tempo, fazer tudo para não haver candidatos de esquerda no segundo turno. Neste domínio, a responsabilidade do PT é particularmente forte por ser o principal partido de esquerda e ter como pre-candidato o político mais adiantado nas sondagens, ainda que essa pre-candidatura não se possa eventualmente converter em candidatura. As assimetrias entre esquerda e direita que assinalei acima são agora particularmente dramáticas.

Se é verdade o que afirmei acima – que o que o PT viu como conciliação de classes era, para a direita, uma mera aliança política conjuntural – resulta particularmente incompreensível que se insista em políticas de aliança com as forças de direita que apoiaram o golpe institucional quando é evidente que não há agora quaisquer condições para a conciliação de classes, nem mesmo como ilusão credível. Ou seja, as condições que permitiram ao PT ser a esquerda hegemônica no período anterior deixaram de existir. Faria, pois, sentido que a hegemonia fosse reconstruída sem alianças com a direita e, pelo contrário, com alianças construídas horizontalmente com outras forças de esquerda e centro-esquerda. Em vez disso, impera o taticismo da sobrevivência partidária no próximo ciclo político, mesmo que isso implique desperdiçar a oportunidade de eleger um Presidente da República que estanque a vertigem de exclusão e repressão que se abateu sobre as maiorias empobrecidas e racializadas. Esta posição é, no entanto, mais complexa que o puro taticismo. Constitui o cerne da identidade política que Lula da Silva costurou para o PT nas últimas décadas. O fato de estar agora preso faz com que Lula a Silva seja agora mais do que nunca o fiador dessa identidade. O pós-lulismo e o lulismo não podem coexistir. De algum modo, o PT está refém do Lula e o Lula está refém … do Lula.

Deve, no entanto salientar-se que Lula da Silva é um lider político de gênio. A partir de uma cela está a influenciar de maneira decisiva a condução da política brasileira. Não é fácil encontrar na história contemporânea outro líder carismático que consiga ampliar a sua aceitação popular (subir de maneira tão espectacular nas sondagens) apesar de preso há vários meses e depois de uma campanha de demonização mediática e judicial sem precedentes. Diz certamente muito sobre Lula da Silva mas também revela algumas complexidades insondáveis da estrutura social brasileira e do modo como as mensagens mediáticas são recebidas pelo público a quem se destinam.

A aposta de Lula da Silva é a mais arriscada de todas as que fez até agora. Consiste em permanecer na disputa eleitoral o mais tempo possivel e confiar que, no caso de ser declarado inelígivel, haverá uma transferência massiva de votos para o candidato que ele indicar, certamente o candidato a vice-presidente na sua chapa, Fernando Haddad. Provavelmente só assim se garantirá a presença de um candidato de esquerda no segundo turno. A hipótese mais segura de tal acontecer seria a de ter havido um entendimento entre Lula da Silva e Ciro Gomes (PDT), uma hipótese que foi descartada (definitivamente?). Se a aposta de Lula tiver êxito, a direita vai ter de reavaliar a eficácia e os custos políticos do golpe institucional, uma vez que sem ele talvez assumisse o poder nestas eleições de maneira mais segura e limpa. No caso de decidir não adulterar ainda mais o jogo democrático, terá certamente de investir tudo em agravar os custos políticos da reversão das leis (a contra-reforma) que entretanto conseguiu aprovar durante o interregno do golpe institucional.

Se a aposta de Lula falhar e um candidato de direita for eleito, as classes populares vão ver ainda mais agravadas as suas condições de vida e com isso o gênio político de Lula não poderá deixar de ser questionado. Seguir-se-ão intensas disputas no seio do PT e provavelmente algumas cisões. Abrir-se-á então o período pós-Lula. Em face disto, tudo indica que, com base no PT, não será possível, por agora, pensar numa renovação das forças de esquerda a partir de uma nova política de construção de hegemonia.

Fora da esquerda hegemonizada pelo PT, o PSOL está a construir uma alternativa junto com o movimento Vamos, oriundo da Frente Povo Sem Medo, o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Tecto), a APIB (Associação dos Povos Indígenas do Brasil) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Os candidatos à presidência da República são Guilherme Boulos (presidente) e Sonia Guajajara (vice-presidente). Esta candidatura aposta na renovação das esquerdas com base em novas lógicas de aliança e de articulação programática e com exclusão de alianças com as forças de direita. Parece, pois, estar a tirar as conclusões corretas de tudo o que aconteceu nos últimos anos. No entanto, deve estar cada vez mais consciente que tal renovação só é pensável depois das eleições de 2018 e a sua construção é totalmente contingente, na medida em que dependerá de resultados eleitorais, por agora imprevisíveis, e das consequências sociais que dele decorrerem. No plano da contingência, deverá estar certamente incluida a possibilidade da criação de um novo partido, um partido que seja também um partido novo, um partido-movimento, construído internamente por mecanismos de democracia participativa para ser verdadeiramente novo e inovador no plano da democracia representativa.

Na base desse partido estarão eventualmente movimentos e organizações sociais, bem como secores mais movimentistas do PSOL e setores de esquerda do PT e de outros partidos. Para esta aposta fazer sentido é preciso que o trabalho político de base das forças sociais e políticas de esquerda continue a ser possível no próximo ciclo político. A ausência das ameaças ao capitalismo que exitiam há cem anos parece indicar que se manterá o regime democrático mesmo que de baixíssima intensidade. Deve, no entanto, considerar-se uma incógnita perturbadora. Afinal o fascismo e o neofascismo têm razões que a razão desconhece.