O Brasil é importante demais para que Portugal simplesmente vire os olhos. Por Pedro Teles, físico português

Atualizado em 27 de julho de 2019 às 9:15
Intelectuais

POR PEDRO TELES, físico e pesquisador, organizador da manifestação e abaixo-assinado contra Sergio Moro em Portugal

Imagine um Portugal paralelo em que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa indicava o próprio filho para embaixador em Bruxelas. Imagine que uma deputada da Assembleia da República ameaçava no Twitter abertamente um jornalista.

Imagine que o Primeiro-Ministro António Costa afirmava que iria indicar para a próxima vaga do Tribunal Constitucional um juiz “terrivelmente católico”. Imagine que no Governo de Pedro Passos Coelho, convidavam o juiz Carlos Alexandre para Ministro da Justiça.

Imagine que, em retaliação por divulgar mensagens incriminadoras de um político, um jornalista estrangeiro em Portugal passasse a receber ameaças de morte diárias, e que pelos seus artigos reveladores de crimes desse político, fossem publicados artigos difamadores, com documentos forjados e falsos, pedindo abertamente a sua prisão ou deportação imediata, inclusive por deputados da Assembleia da República, com total impunidade.

Imagine ainda que esses mesmos artigos eram publicados e partilhados abertamente nas redes sociais pelos próprios filhos do nosso Presidente. Imagine um hipotético Ministro da Justiça português a utilizar a Polícia Judiciária para perseguir e intimidar jornalistas, numa “vendetta” pessoal pela divulgação de mensagens que o incriminam.

Imagine que um juiz em Portugal aceitava utilizar dinheiros públicos por um procurador para financiar um vídeo publicitário e lançar ambos como vedetas de palestras, pagas a peso de ouro.

Ok, a esta altura o leitor deve estar a achar que estou a fazer uma brincadeira de mau-gosto. Felizmente, e com todos os seus defeitos, este Portugal não existe. Mas, talvez para surpresa do leitor, existe um país em que todas estas coisas estão a acontecer neste preciso momento.

Esse país chama-se Brasil. Leia o texto de novo, substituindo apenas “Portugal” por “Brasil” e cada cargo político português pelo seu cargo correspondente no Brasil, e todas as afirmações feitas em cima são verdade.

Pode-se perguntar como é possível não saber de todas as coisas escritas acima. Isso deve-se ao facto de que a nossa comunicação social obtém tradicionalmente a informação do que acontece no Brasil de forma “filtrada” pela grande mídia brasileira (leia-se Rede Globo, e agora também as redes evangélicas).

E a grande mídia brasileira, conivente com todo o processo de deterioração das instituições democráticas do Brasil, desde que se iniciou o processo de impeachment da então Presidente Dilma Rousseff, não pretende que esta realidade digna de uma série estilo da “House of Cards” mas com gosto tropical, trespasse para o exterior.

No entanto, acho que em Portugal, não podemos mais simplesmente fechar os olhos a esta situação.

Este artigo pretende também ser um apelo aos jornalistas portugueses para começarem a fazer uma cobertura real dos verdadeiros acontecimentos no Brasil.

Com todo o discurso da “irmandade” e “união” entre os dois países, o nosso país e nós, portugueses, incluindo os nossos políticos, não podemos mais fechar os olhos à rápida queda da democracia brasileira.

É digno de nota que, ao contrário do que tem acontecido com outros políticos europeus, incluindo o antigo presidente do Parlamento Europeu Martin Schulz, nenhum político português tenha visitado Lula da Silva na prisão (apesar de 22 deputados terem enviado uma nota ao Supremo Tribunal Federal em Julho de 2018 pedindo que Lula pudesse “voltar ao pleno exercício dos seus direitos fundamentais”), uma prisão cujas evidências cada vez mais demonstram ser política.

E não, não se trata de negar o muito necessário combate à corrupção aqui ou lá, ou de procurar beneficiar-se de qualquer desenrolar de uma normal disputa entre a esquerda e a direita.

Trata-se sim de defender e querer preservar os valores democráticos no Brasil e na região, já tão afectada, no presente e no passado, por regimes autocráticos e repressivos. Pela sua dimensão, o Brasil é importante demais para que simplesmente se vire os olhos. Pela história, muito próximo a nós para que o ignoremos.

Dizia Chico Buarque na sua famosa canção “Tanto Mar”, “Canta a primavera, pá, cá estou carente, manda novamente, algum cheirinho de alecrim”.

Talvez seja esta a altura certa para começarmos a fazer isso. O fascismo, casado com políticas ditas “neo-liberais” e protectoras dos ultra-ricos, que cresce também a passos largos na Europa, não pode ser normalizado, nem aqui, nem lá, sob pena de perdermos todas as conquistas sociais e democráticas desde o pós Segunda Guerra.

Ernest Hemingway, quando lhe perguntaram se era comunista, respondeu “Não, sou anti-fascista”, ao que perguntaram “Desde quando?”, o que ele respondeu “Desde que percebi o que era o fascismo”. Esta luta é de todos.

Quando Sergio Moro veio dar uma palestra no Campus da Universidade Nova, no passado dia 28 de Maio, no âmbito das Conferências do Estoril, nós, os organizadores da manifestação contra a sua presença, avisamos não só a direcção da conferência, como os políticos que se deslocaram ao local (incluindo o Presidente Marcelo), que era inaceitável que normalizassem a presença no nosso país deste Ministro de Bolsonaro, ainda por cima numa conferência realizada com patrocínios de entidades públicas e numa universidade pública.

Na altura, a comunicação social portuguesa praticamente ignorou os nossos apelos, assim como a organização da conferência, e os políticos visados.

Hoje, depois de vermos confirmadas pelos vazamentos do site The Intercept Brasil as nossas convicções sobre as acções deste ministro, sentimo-nos justificados.

Esta farsa de governo proto-fascista não pode mais ser ignorada nem aqui, nem na restante Europa, e acções imediatas são necessárias pelos deputados e políticos europeus. Bolsonaro, que ainda há meses, criticava o acordo UE-Mercosul, utiliza isso agora como cavalo de batalha e como conquista do seu governo, à boa maneira populista.

Talvez seja hora dos dirigentes europeus colocarem um travão às negociações, com exigências claras que o acordo só continuará para o retorno à normalidade institucional e democrática no país.

É impensável que a actual Europa lide com gente desta, seja Moro, seja Bolsonaro, seja Damares, seja Weintraub, seja quem for.

Temos, todos juntos, que dizer não. O fascismo, não passará.