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O Brasil que não perdoou Sobel pelas gravatas canonizou Gugu pelo lixo que levou à TV. Por Kiko Nogueira

Gugu Liberato

A maneira como o brasileiro reagiu à morte de Gugu Liberato e de Henry Sobel, no mesmo dia, dá uma dimensão da nossa encrenca psicotrópica-moral.

Sobel foi um gigante que ajudou a enterrar a ditadura quando se recusou, em outubro de 1975, a sepultar Herzog como suicida no Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo.

O jovem rabino viu as marcas de tortura e não comprou a versão oficial do Exército.

Na semana seguinte, comandou uma missa ecumênica histórica com dom Paulo Evaristo Arns, à época arcebispo de São Paulo, e o pastor Jaime Wright na Catedral da Sé.

Tinha 31 anos. (Meu pai, o jornalista Emir Nogueira, fez parte da organização).

Sobel não encarou apenas o regime militar.

Sofreu resistência da comunidade judaica, que nunca deixou de ser conservadora. Mesmo assim, foi adiante.

A internet não perdoou Sobel quando ele faleceu.

O episódio em que ele furtou gravatas foi mais lembrado que sua batalha pela democracia.

Aconteceu numa loja em Miami em 2008. Ele passou uma noite na cadeia. De volta ao Brasil, se internou e revelou o uso de remédios. Foi humilhado, julgado e escorraçado.

Acabou afastado da CIP, Congregação Israelita Paulista.

Em 2013, admitiu “uma falha moral”. “Peço perdão a todos”, falou. Repetiu essa penitência ao longo da vida.

Nunca foi perdoado. Nem no caixão.

Gugu Liberato foi vítima de um acidente fatal ao cair de uma altura de 4 metros quando fazia reparo no ar-condicionado no sótão de sua mansão de 629 metros quadrados em Orlando.

(Seis quartos, sete banheiros e uma área externa descrita no site realtor como um “oásis particular com uma encantadora piscina de água salgada, equipado com spa, cozinha e uma lareira a gás”).

Por razões óbvias, seu passamento teve muito mais repercussão que o do outro.

Mas sua “obra” está sendo festejada.

Segundo a Folha, ele é “dono de uma das trajetórias mais brilhantes da TV brasileira”. 

O El Pais o descreve como alguém que “mudou a TV”.

Um vice-presidente da CNN Brasil citado pelo jornal o classifica como “bom entrevistador porque ouvia atentamente o que o entrevistado dizia e não se desconcentrava pensando na próxima pergunta”.

“Tinha uma curiosidade genuína, mas não agressiva. Era educado, polido, sutil”.

Ora.

Cria de Silvio Santos, eterna cara de menino, Gugu ficou notório com um atração chamada Domingo Legal, um vale tudo ordinário no SBT.

Na guerra pela audiência, criou um pornô soft numa banheira, entrevistava assassinos famosos, cobriu a “exumação” do cadáver de Dercy Gonçalves.

O ponto mais baixo foi a farsa do PCC em 2003, quando dois “membros” da quadrilha falaram ao programa.

Os picaretas encapuzados receberam 500 reais cada um para mentir diante do apresentador, que fingia surpresa.

Um antecessor das fake news de massa.

Gugu nunca admitiu ter conhecimento da fraude. Cascata completa que ele jamais reconheceu. 

Sua morte aos 60 é uma tragédia, claro. A questão não é pessoal.

Mas seu legado foi contribuir com mais lixo para o monturo da televisão aberta brasileira. Gugu não foi visto, em décadas, indicando um mísero livro.

Henry Sobel será velado nos EUA numa cerimônia discreta.

Gugu Liberato, na Assembleia Legislativa de São Paulo. Doria decretou três dias de luto em sua memória.

Bolsonaro prestou solidariedade à família de somente um deles. Você sabe qual.

Sobel não teve perdão. Gugu nunca precisou pedir.

.x.x.x.x

Publicado em 23 de novembro de 2019 e republicado hoje, em razão de ter sido uma das mais lidas em 2019.

Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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Kiko Nogueira

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