O caso Assange e um escândalo que conhecemos bem: juízes parciais. Por Sara Vivacqua

Atualizado em 2 de setembro de 2020 às 7:50

O script parecia estar bem acertado para que Lady Emma Arbuthnot, magistrada-chefe em Westminster, fosse a “juíza natural” que decidiria sobre a potencial extradição de Julian Assange do Reino Unido aos Estados Unidos. Ela foi nomeada e parecia dar-se início a uma extradição eficiente, discreta, “não burocrática” e indolor para a reputação do Judiciário e governo britânicos. No entanto, uma bomba – previsível, mas facilmente recalcada com sucesso na cabeça daqueles extraditam Assange – detonou-se em meio do caminho: a imprensa livre e o interesse do público pelos fatos.

Jornalistas investigativos começaram a suspeitar e a então levantar revelações sobre a magistrada e sua família durante meses, e acabaram surpreendendo-se com as descobertas que, se escritas em um roteiro de Hollywood, seriam tidas como desorbitadas. O que se revelou, de fato, foram articulações aprovadas entre as altas elites política, corporativa e militar britânicas para eliminar quaisquer percalços na entrega do inimigo número um da América e da elite belicista do mundo.

Vamos começar por ordem alfabética; Alexander Arbuthnot e o rastreamento escuro.

“The Daily Maverick” revelou que o filho da magistrada, Alexander Arbuthnot, é vice-presidente e consultor de cibersegurança de uma empresa com um portfólio de mais de 4 bilhões de libras, a Vitruvian Partners, responsável por financiar com investimentos multi-milionários a Darktrace (rastreamento escuro, em português). A Darktrace não se trata de qualquer empresa, mas de uma corporação especializada em cibersegurança criada pelo MI5 (agência de inteligência britânica) e o GCHQ (Government Communications Headquarter), com funcionários recrutados diretamente da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) e da Agência Central de Inteligência (CIA); as mesmas agências por trás da acusação contra Julian Assange por publicar documentos secretos. Em 2018, a colega de Alexander e diretora executiva da Vitruvian, Sophie Bower-Straziota, foi nomeada para a diretoria da Darktrace. Em sua função de vice-diretor, também é provável que Alexander gerencie a conta da Darktrace na sua empresa. As conexões da família Arbuthnot com a alta comunidade de inteligência e militar britânica pereciam ficar difíceis de serem caracterizadas como acidentais, e de assim descartar potenciais conflitos de interesse da magistrada.

Tal pai, tal filho. Lord Arbuthnot e os crimes de guerra revelados pelo Wikileaks

Como revelou o wsws.org, o marido da magistrada, James Norwich Arbuthnot, parlamentar conservador da Câmara dos Lordes, foi entre 2005 e 2014 presidente do Comitê Restrito de Defesa, órgão que supervisiona o Ministério da Defesa e as forças armadas britânicas. Sob sua supervisão levaram-se a cabo as operações militares no Afeganistão e no Iraque, bem como as guerras pela mudança de regime na Líbia e na Síria. Todas essas operações militares e suas atividades criminais foram expostas extensamente pelo WikiLeaks. No banco de dados do Wikileaks há mais de 2000 referencias sobre as atividades de Lord Arbuthnot e seus colegas, 50 sobre o Lord, e várias outras sobre o fabricante de defesa de guerra, Thales, onde hoje Lord Arbuthnot é co-presidente do comitê de assessoria britânica.

O Lord, a Lady e várias Vendetas

Mas foi em 2016, quando de acordo com Declassified UK, que Liz Truss, então Secretária da Justiça, “aconselhou” a Rainha Elisabeth a nomear Lady Arbuthnot como Magistrada Chefe em Westminster. Lady Arbuthnot participou com Liz Truss dois anos antes de uma reunião secreta na Espanha no fórum “Tertúlias” (reunião de amigos em espanhol, chatroom em inglês). A viagem da Lady foi financiada pelo Ministério de Relações Exteriores do Reino Unido, assim como sua viagem e de seu marido a outro fórum, o “Tatlidil”, no mesmo ano na Turquia, onde o Príncipe Andrew, o mesmo acusado de participar dos círculos de pedofilia do seu amigo Epstein, presidiu a delegação britânica. Tertúlias e Tatlidil são encontros secretos sobre os quais pouco se sabe, realizados para conectar indivíduos de “alto nível” envolvidos em política e negócios. O Ministério das Relações Exteriores, que considera Tertúlias e Tatlidil como “parceiras” foi o mesmo que rejeitou as conclusões oficiais da ONU a favor de Assange em um twitter, e que recusou a reconhecer o asilo político dado pelo Equador, rotulando Assange de “um verme miserável”.

Manifestação em Londres em defesa da liberdade de Assange. Foto: Stephanie Lecocq/EFE

De olhos abertamente fechados (Eyes Wide Shut)

Quando a pirâmide faraônica que protege Lady Emma Arbunoth começou a ruir revelando seus segredos mais modestos, ela, pelas boas aparências e contenção de danos, teve que ser afastada quando os inúmeros levantamentos a seu respeito não puderam ser contestados. Mas saiu apenas formalmente, num show literalmente para inglês ver, passando o bastão à juíza de Direito, Vanessa Baraitser, enquanto continua na supervisão de todo o caso extraoficialmente.

Nada, ou quase nenhuma informação está disponível em domínio público sobre sua dublê Vanessa Baraitser, que parece ter sido removida intencionalmente da buscas do Google. Essa informação tão pouco seria relevante, se não fosse por suas decisões flagrantemente abusivas e sem previsão legal, e os verdadeiros malabarismos do terraplanismo jurídico, os quais Baraitser se dispõe a fazer em nome dos protagonistas. A última delas, foi no dia 27 de julho, quando ela “esqueceu-se” de pedir para que o réu fosse trazido a audiência e tentou decidir sobre o andamento do processo sem a presença de Assange por vídeo link.

Declassified UK publica agora uma nova denúncia sobre o governo Britânico no caso Assange. Desde fevereiro o governo se recusa a disponibilizar informações, que pelas leis de aceso à informação do Reino Unido, seriam públicas. Decisões transitadas em julgado da juíza Baraitser foram retiradas do escrutínio público sob as alegações ad absurdum de que juízes (responsáveis por decisões sobre direitos humanos) não exerceriam cargo público e que tribunais não seriam órgãos públicos para fins das leis de acesso informação. A plebeia parece ter adquirido a prerrogativa da discrição absoluta garantida apenas a Lords.

Parece que o Wikileaks não apenas revelou os segredos obscenos que nem os livros de história nos contariam, mas a própria luta pela liberdade de Assange parece ter esse como seu caminho necessário: rasgar e desnudar sem pudor o que há de mais soturno e doente, que o establishment se compromete em preservar.

Se hoje Assange padece sem nenhuma condenação e incomunicável com o mundo na infame prisão de alta segurança de Belmarsh, enquanto o Wikileaks trabalha em tempo integral para mantê-lo vivo, sua busca invariável pela verdade redefiniu para sempre os parâmetros de uma imprensa livre. Pulsa do lado de fora, como uma força autônoma, e quem sabe mais imprevisível que as forças do “Deep State” ou Estado profundo, a coragem de Assange multiplicada no trabalho e palavras de cada um destes jornalistas e daqueles que aspiram à verdade.

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Agradecimentos ao DCM, DECLASSIFIED UK, Consortium News e WSWS.ORG pelo seu compromisso na luta pela liberdade por Assange.

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Nota da redação: O julgamento de Assange começará no próximo dia 7, e Sara Vivacqua, juntamente com Juan Passarelli, fará a cobertura para o DCM. No caso Assange, além da brutalidade institucional contra o indivíduo, estão em jogo o futuro do jornalismo e a liberdade de expressão. Assange nada mais fez que tornar públicas informações que controladores de estados nacionais queriam manter em segredo.