O caso Champignon e os homens em dificuldades financeiras que se matam

Atualizado em 2 de outubro de 2014 às 16:34

De acordo com a polícia, o baixista teria cometido suicídio por causa de dívidas.

dívidas

A primeira vez que ouvi falar em suicídio eu tinha 7, 8 anos. Foi o diretor da repartição da minha mãe, em Cachoeiro. Ela trabalhava, àquela época, no escritório do Sistema de Merenda Escolar. O diretor, um homem careca, baixote, de olhos azuis pequenos constritos por óculos de lentes de fundo de garrafa e, talvez o que lhe atalhou a vida: muito falante. Ele falava muito. Pelas costas, diziam que tudo o que ele matraqueava era mentira.

Para mim, as coisas que eu ouvia o chefe da repartição dizer quando minha mãe me levava ao trabalho dela eram, mesmo eu moleque, difíceis de abonar. Jantares em Nova York no fim de semana , jóias caríssimas herdadas que ele daria à sua namorada que ninguém havia visto, carros que ele mandara importar e que mal haviam sido inventados. Apartamentos. Linhas de telefone (sim, isso faz uns 20 anos). Era homem de muitas posses, enfim. Embora fosse nitidamente só um burocrata interiorano de calça de tergal e camisa pólo, cercado de papéis timbrados e retratos de homens de terno ornados por faixas verdes e amarelas.

Ouvi minha mãe dizer que havia sido revólver. Na cabeça. O motivo, claro: problemas financeiros.

Cresci ouvindo histórias de chefes de família que, na evidência de uma encalacração além de qualquer remédio, preferiram a saída, digamos, mais à mão. “Fulano perdeu tudo e deu tiro na orelha”, “passaram a perna feio em Sicrano e ele se enforcou” , “Beltrano foi à bancarrota e não aguentou, o velório é na capelinha pública”, etc.  Não há, creio, motivos para duvidar que a sensação de não mais prover a família por anos e anos diante de um revés financeiro descomunal seja a pior vivida por aqueles que tomaram essa decisão.

Não estou aqui falando da depressão, do fosso escuro e maldito da depressão, que tira vida independentemente do que esteja acontecendo ao redor. Estou falando somente do suicídio como forma de resposta a uma grande mudança no padrão de vida.

No Japão há o suicídio como forma de restaurar a honra. O seppuku ou harakiri (cortar a barriga, em japonês). O caso mais recente é o do medalhista olímpico Isao Inokuma que, em 2001, aos 63 anos, cometeu o suicídio ritual em meio a denúncias de irregularidades e perdas financeiras maciças de sua empresa.

Camus diz que a resposta à noção de que o mundo é absurdo, de que Deus às vezes falha, de que a injustiça é farta – a resposta não está no suicídio, mas na revolta. A revolta é ser como Sísifo, o mortal que desafiou os deuses do Olimpo e foi condenado a passar o resto da vida carregando a mesma pedra morro acima durante o dia apenas para vê-la rolar para baixo durante a noite. “Imagino que Sísifo esteja feliz”, diz ele. Se não há remédio, remediado está.

Lembro também do Rubem Braga que, jovem, guardava já uma instância asperamente sardônica em relação à autoeliminação. Ele escreveu, em crônica, uma carta a um rapaz do bairro dele, morto pelas próprias mãos. Ele começa até com certa condescendência, se não me engano (estou citando de orelha; tenho medo de entrar no meio da bagunça dos meus livros, puxar um volume e ser brutalmente soterrado por uma pilha de romances velhos. Podem dizer que foi um suicídio literário).

Mas o Rubem vai empurrando o pesar com o cinismo ao comentar que, passada uma semana, as coisas continuam iguais no bairro; a moça que o rapaz amava já não chorava mais e dava até bola para o cadete de peito perfumado que descia a ladeira, as beatas inconsoláveis fofocavam e, como chave de ouro, ele cita o português da venda que diz, grave, algo mais ou menos assim: “morreu moço o gajo, que coisa mais triste…” e fez uma pausa. Para emendar, o empreendedor lusitano muda um pouco de expressão (tenta afetar tristeza mas mostra ligeira irritação): “E morreu deixando a conta do mês para pagar…”

Está tudo dito aí na fala do português.