O caso do Painho escancara a hipocrisia nacional: zombar de religiões afro sempre pôde. Por Sacramento

Atualizado em 11 de janeiro de 2020 às 7:57
Painho, personagem de Chico Anysio

Há décadas as religiões de matriz africana inspiram piadas, personagens e esquetes. A indignação, nesses casos, foi quase nula, como se diante da lei essas crenças tivessem um “foro desprivilegiado” que permitisse todo tipo de chacota.

Mães e pais de santo foram personagens dos Trapalhões, da Praça é Nossa e dos humorísticos do Chico Anysio.

O comediante foi o criador do “Velho Zuza”, um preto velho, e do “Painho”, pai de santo homossexual e influente na sociedade baiana, que não economizava na hora de praticar bullying contra a ajudante Cunhã.

Até bem pouco tempo, expressões como “chuta que é macumba” ou “volta para o mar, oferenda” eram tempo ditas com naturalidade mesmo entre pessoas sensíveis às causas sociais e às pautas da diversidade.

O desprezo pelos aspectos sagrados de religiões como Candomblé e Umbanda é generalizado a ponto do hoje deputado federal Alexandre Frota ter dito durante uma entrevista que forçou uma mãe de santo a manter relações sexuais com ele.

O caso chegou a dar origem a um procedimento investigativo contra Frota, para apurar a possível prática de apologia ao estupro. A investigação não foi acatada pelo Ministério Público, que arquivou a acusação.

Anos depois, ex-ministra da secretaria de Políticas para Mulheres no governo Dilma Rousseff, Eleonora Menicucci, foi condenada a pagar dez mil reais a Frota por ter considerado a narrativa de apologia ao estupro.

Será que se em vez de mãe de santo Frota tivesse dito que estuprou uma freira, irmã carmelita ou pastora a reação seria a mesma? Possivelmente não, mas se tratando de “macumba”, tudo é permitido.

Inclusive, mesmo a turma supostamente desconstruída do Porta dos Fundos costuma fazer chacota com religiões de matriz africana.

Um dos esquetes, chamado “Amarelo”, mostra a orixá Iemanjá oferecendo sexo oral a um homem que teria usado vermelho na virada do ano.

Para quem cultua Iemanjá, a cena pode ser tão ofensiva quanto um Jesus Cristo gay, com o detalhe de que ao contrário do cristianismo, as religiões de matriz africana estão longe de serem hegemônicas e são alvo de discriminações e ataques físicos.

Nenhum desembargador, contudo, usou a caneta para retirar o vídeo do Youtube, porque o esquete do Porta dos Fundos e seus antecessores como o personagem Painho são exemplos daquilo que o pesquisador Adilson Moreira chama de racismo recreativo

Segundo Moreira, o humor racista tem o propósito de afirmar que os membros do grupo racial dominante são os únicos merecedores de respeito.

A ironia é ver como a reação de conservadores extremistas ao especial de Natal do Porta dos Fundos explicitou o tratamento dado às religiões herdadas da África, há anos vilipendiadas até por quem deveria ajudar a protegê-las.