O caso do suicídio do pai de Luciano Hang, “seu Lula”, transformado em “infarto” pela Havan. Por Renan Antunes

Atualizado em 29 de setembro de 2021 às 14:12
Luciano Hang e o pai, “seu” Lula

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POR RENAN ANTUNES DE OLIVEIRA, de Brusque (SC)

Na tarde do domingo, 27 de junho de 2010, o empresário Luciano Hang recebeu um daqueles golpes capazes de tirar qualquer pessoa do eixo – saiu na varanda de sua confortável mansão no centro de Brusque e encontrou o pai, morto, enforcado, pendurado num caibro, com a língua de fora e os olhos arregalados.

De acordo com vários relatos, Luciano baixou sozinho o cadáver do pai da forca. Em seguida, deu início a um teatro para ocultar o suicídio do homem que o ensinou a viver.

Por telefone, chamou o primo Nilton, a funerária Zuchi, o gerente de marketing da Havan, empresa que se tornaria uma das maiores redes varejistas do Brasil, e o médico Rafael Saádi, único legista da cidade, nesta ordem.

Uma farsa foi então tentada para transformar o suicídio em morte natural.

Por alguma razão que só Luciano pode entender, ele queria embelezar a memória do pai, Luiz, apelidado “seu” Lula, morto aos 79 anos, então uma das figuras mais populares da cidade por suas excentricidades.

Primeira providência: o pessoal do marketing distribuiu um comunicado à imprensa lacrando a mentira de que o velho Lula morrera infartado.

Quando a notícia chegou às redações, um editor da rádio Cidade despachou os repórteres AD para o Instituto Médico Legal (IML) e PS pra delegacia.

AD encontrou seu Lula numa mesa metálica, com a língua horrivelmente para fora: “Dava para ver a marca da corda no pescoço”, lembra AD.

Anoitecia.

Os repórteres que, numa cidade então pequena, sempre tinham acesso à delegacia, desta vez tiveram que ficar do lado de fora – Luciano Hang estava lá dentro, respirando todo oxigênio de Santa Catarina.

É fácil entender o cuidado dos policiais em fechar as portas – ele ainda não era o Véio da Havan, mas já era um dos homens mais ricos da cidade e conhecido por seus chiliques.

Na rádio, os jornalistas lutavam contra a verdade: “Se ele disse que seu pai morreu infartado, não vi motivos para escrever outra coisa”, conta um ex-diretor.

Ele disse que a primeira versão que chegou à redação fora que Lula tinha sido assassinado: “Checamos, então preferimos contar a mentira oficial do infarte”.

Enquanto isso, na delegacia, o delegado de plantão lutava com sua consciência para recusar uma polpuda propina para produzir um atestado de óbito frio – ele passou a oferta para o médico-legista, Rafael Saádi.

O doutor Saádi, hoje um proctologista estabelecido num belo consultório no centro, também não aceitou “preencher um cheque com quantos zeros quisesse”, oferecido por Luciano para que a causa da morte fosse alterada.

O médico se recusou, alegando que se algum dia a morte fosse questionada ele seria o responsável. Bateu pé, não aceitaria “dinheiro nenhum para mentir”.

E escreveu no atestado de óbito a verdade: “insuficiência respiratória aguda, asfixia mecânica (constrição mecânica por laçada), enforcamento”.

A certidão de óbito de Luiz Hang, pai de Luciano

Pelo relato de um participante da reunião, Luciano Hang não derrubou uma lágrima sequer. Primeiro, ofereceu o dinheiro. Depois, tentou levar as autoridades no grito. 

Enfim, saiu da delegacia espalhando a fake news do infarte, mas com um atestado verdadeiro. Em seguida, ordenou ao agente funerário a cremação imediata do corpo, levado na mesma noite ao Crematório Vaticano, em Balneário Camboriú, a 30 km.

Ninguém fora da família – nem o gerente de marketing – participou da cerimônia final. Seu Lula virou cinzas na manhã da segunda-feira.

Luciano voltou ao trabalho na tarde do mesmo dia, como se tivesse tirado a manhã de folga. Nenhum dos citados neste trecho lembra de ter visto o vaso com as cinzas.

Seu Lula deixou a esposa, dona Regina, dois filhos, João e seu irmão Luciano, e bens a inventariar – entre eles, uma cota pequena do império que estava sendo erguido.

O suicídio de seu Lula estava anunciado. Ele vinha dando sinais de demência senil.

É claro que nem sempre seu Lula foi assim. Ele era o herói do filho adolescente, tanto que aos 17 anos Luciano seguiu seu exemplo e foi trabalhar nas indústrias Renaux, a mesma onde o pai fez carreira de tecelão, da juventude à aposentadoria.

A ética de trabalho do pai era exemplar, com 40 anos na mesma empresa. O valor do emprego para o homem comum foi passado para o filho.

Em suas propagandas, Luciano sempre cita a geração de empregos da Havan. Ele promete que basta conseguir uma vaga na firma para o cidadão comum ingressar num “vidão”.

Poucos notaram, mas a morte do pai teve um profundo impacto em Luciano. De certa forma, Lula podava o crescimento do filho.

O pai perguntava “o porquê de tanta ambição, para que crescer mais?”, conforme contou enfermeira do postão do SUS.

Amigos próximos contam que Luciano passou por uma depressão logo depois da morte do pai. Perdeu peso até a forma que tem hoje, no personagem de Véio da Havan.

Luciano lutou sozinho contra a doença, até emergir do fundo do poço mais poderoso: meses depois da morte do pai ergueu uma megaloja e o Centro de Distribuição da Havan na BR101, dando início ao arrojado programa de expansão para chegar a 200 lojas em 2022.

Com “seu” Lula morto, Luciano cresceu até ser um bilionário da revista Forbes.

De uma certa forma parece uma profecia feita pelo pai, relatada pela mesma enfermeira do SUS que o atendia: “Não sei o que deu no meu filho, parece que acima dele nem Deus, só guarda-chuvas”.

Procurado para esta reportagem, Luciano Hang não quis falar com o DCM.

 

A nota da assessoria de imprensa da Havan sobre a morte do pai de Luciano Hang: “ataque cardíaco fulminante”