O caso Lula e o direito de candidato com impugnação fazer campanha. Por Fernando Neisser e Luiz Fernando Casagrande Pereira

Atualizado em 26 de julho de 2018 às 17:15
Lula (Foto: Mauro Pimentel/AFP)

Publicado no ConJur

POR FERNANDO NEISSER E LUIZ FERNANDO CASAGRANDE PEREIRA, advogados

Em recente artigo ao site Migalhas, Flávio Cheim Jorge, Ludgero Liberato e Marcelo Abelha Rodrigues, estimados processualistas do Espírito Santo, apontaram algumas deficiências do modelo legislativo brasileiro de registro de candidaturas, especialmente no que toca ao que denominam “candidaturas natimortas”.

Para os autores, a possibilidade de que candidatos contra os quais pesam causas de inelegibilidade possam fazer campanha é um atentado contra a própria democracia, destinando-se a ferir a liberdade do eleitor. Como remédio para tal patologia, recomendam o uso das tutelas provisórias — de urgência e evidência —, com o intuito de proteger o eleitorado de seu próprio erro.

A admiração e amizade dedicadas aos autores não eximem da necessidade de um contundente contraponto. Quando a instrumentalidade do processo eleitoral torna-se finalidade em si mesma, atropelando direitos fundamentais, é preciso parar e mirar o cenário a partir de um ponto de vista mais amplo.

Em primeiro lugar, há que se concordar com a crítica de fundo quanto à inadequação do arranjo normativo brasileiro. Não faz sentido, sob qualquer aspecto que se analise o tema, a simultaneidade de registro de candidaturas e início dos atos de propaganda eleitoral.

Todo debate que se tem travado seria resolvido se o Congresso Nacional não tivesse insistido, quando da aprovação da Lei 13.165/15, em manter atreladas essas distintas fases do processo eleitoral. Os motivos da lei são de fácil compreensão. Postergado o registro, podem os partidos prosseguir com as negociações até a undécima hora. Dentre a infinidade de partidos que temos, muitos preferem aguardar e apostar no cavalo que se encaminha para a vitória. O registro antecipado obrigaria o fisiologismo a recuar — proposta que não encontrou acolhimento nos debates da minirreforma eleitoral de então.

Como se vê, o mundo real dista do ideal. A lei que se tem é esta, prevendo que em 15 de agosto do ano das eleições tem-se o prazo máximo para o pedido de registro das candidaturas, iniciando-se no dia subsequente a propaganda eleitoral.

Neste cenário, em que a análise das condições de elegibilidade e das causas de inelegibilidade ocorre ao mesmo tempo em que os candidatos circulam pelas ruas e redes sociais pedindo votos, a única saída é aquela prevista no artigo 16-A da Lei 9.504/97: “O candidato cujo registro esteja sub judicepoderá efetuar todos os atos relativos à campanha eleitoral, inclusive utilizar o horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão e ter seu nome mantido na urna eletrônica enquanto estiver sob essa condição, ficando a validade dos votos a ele atribuídos condicionada ao deferimento de seu registro por instância superior”.

Os motivos para tanto são de simples compreensão, mas exigem que se olhe o fenômeno sob a luz dos direitos políticos de candidatos e eleitores, em vez de se ter por primeira preocupação a instrumentalidade da eleição.

Ser candidato é um direito fundamental, protegido não apenas na Constituição Federal, mas em todos os pactos e tratados internacionais de direitos políticos dos quais o Brasil é signatário. Ter a possibilidade de fazer parte do governo — obtendo para isso o voto dos pares — é a operacionalização da expressão “governo pelo povo”. É o povo quem governa na democracia, por mais que vozes bem-intencionadas sigam crendo que há os que votam certo e os que votam errado — estes últimos precisando da tutela de uma categoria de “iluminados” a lhes guiar.

Mas não apenas o direito dos candidatos é resguardado com o imperfeito, porém necessário, modelo brasileiro; também o direito dos eleitores é prestigiado. Uma democracia só merece ser assim chamada quando oferece de fato nas eleições — e não apenas formalmente — as opções que se digladiam no mercado das ideias.

Assim, enquanto debate-se eventuais impugnações ao registro das candidaturas, é essencial à própria democracia que prossigam os atos de campanha eleitoral. Não porque se pretenda confundir o eleitorado, mas por respeito, dando ao corpo político a possibilidade de debater todas as alternativas que podem vir a estar na mesa no dia do pleito.

E aqui está a questão fundamental, que parece ter sido esquecida no artigo aqui contraposto. Há inelegibilidades em relação às quais não há qualquer hipótese de reversão; o nascimento em outro país, por exemplo, para os cargos que exigem ser o candidato brasileiro nato. Apenas nesses casos é que se poderia admitir uma tutela provisória, como sustentou um dos autores em artigo acadêmico.

A maior parte das situações, dentre as quais a condenação criminal em segunda instância, contudo, pode ser revertida ao menos até a data das eleições. Há jurisprudência, inclusive, admitindo que o afastamento da inelegibilidade pode ocorrer depois do pleito e, ainda assim, beneficiar o candidato eleito.

Conforme destacado pela Folha de S.Paulo, em 2016 nada menos do que 70% de 145 candidatos a prefeito que haviam sido indeferidos obtiveram a reversão da negativa de registro em data posterior à eleição. Foram diplomados, tomaram posse e hoje governam os eleitores que os escolheram. Caso a proposta dos autores que aqui se refuta valesse, milhões de votos teriam sido ignorados.

Em relação ao caso do ex-presidente Lula, pendem de análise os pedidos de suspensão da inelegibilidade, como apregoa o artigo 26-C da Lei Complementar 64/90, feitos no corpo dos recursos especial e extraordinário interpostos contra o acórdão do TRF da 4ª Região.

A possibilidade de concessão do efeito suspensivo nesses casos é patente, uma vez que se consolida a compreensão, quanto mais se analisa e discute o processo criminal que culminou com sua condenação, que os inúmeros vícios ali identificados tornam insustentável a manutenção daquele entendimento.

Mais que isso, não se pode afastar de plano a possibilidade de que o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal decidam o mérito dos recursos, reformando o acórdão regional e absolvendo o ex-presidente Lula daquela acusação.

Em quaisquer dessas hipóteses, é imprescindível que se tenha permitido o exercício pleno do direito de realização de propaganda eleitoral, direito não apenas do candidato, mas também do eleitor. Sem isso, a absolvição seria uma vitória de Pirro, uma vez que o tempo perdido não volta, e a campanha que deixou de ser feita jamais pode ser retomada.

Em suma, o tempo é o fator essencial que os autores deixaram de lado.

De um lado, o transcurso do tempo, linear e irretratável, é a base para que se prestigie o direito à candidatura. De outro, as possibilidades de reversão da condenação, encobertas nos recônditos do período que medeia o registro das candidaturas e a posse dos eleitos, são o fundamento para que se dê ao eleitor a chance de dar o voto de sua convicção.

Se os Titãs, lembrados pelos autores, repetem versos sobre o que é e o que não pode ser, Cazuza, maior poeta daquela geração, deixou sua lição sobre o tempo:

“Mas se você achar que eu estou derrotado
Saiba que ainda estou rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para”.