O Código Penal Militar representa a permanência da ditadura. Por Luis Felipe Miguel

Atualizado em 1 de julho de 2021 às 23:42
O presidente Jair Bolsonaro, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
Imagem: Marcos Corrêa/PR

Originalmente publicado no FACEBOOK

Por Luis Felipe Miguel

Ontem, o presidente do STM publicou artigo defendendo o julgamento de civis pela justiça militar, em especial no que se refere ao crime de “ofensa às Forças Armadas”. A excrescência jurídica está sendo contestada no STF.

O texto é um primor de má fé e cinismo.

A defesa que faz se sustenta em dois pilares. O primeiro é que a punição de civis por “juízes” militares está prevista em lei, portanto não pode ser questionada.

(Pus “juízes” entre aspas porque os militares não têm nenhuma formação jurídica. O general Luis Carlos Gomes Mattos, que assina o texto, por exemplo, julga os réus com base em sua formação como oficial de infantaria, paraquedista e “estrategista aeroespacial”.)

Ele esquece de mencionar, no entanto, que a legislação a que se refere é o Decreto-Lei 1.001, baixado pela Junta Militar em 1969. Uma herança da ditadura, produzida no espírito do AI-5.

A ADPF que questiona o Código Penal Militar de 1969 aponta exatamente sua contradição com a Constituição, que prevê a imparcialidade judicial e a isonomia entre os cidadãos. Este ponto o general e cosplay de juiz faz questão de ignorar.

No único momento em que trata, de forma algo críptica, da questão, ele escreve: ” A avaliação de que esse crime surgiu na época em que vivíamos sob a administração de um governo militar não prospera e pode dar ao leitor a falsa impressão de que naquele período não se podia ofender, mas, no momento atual, a ofensa é livre, autorizada. Não é. A ofensa não pode ser permitida, independentemente do regime de governo.”

Daria para elencar os erros do trecho. Não é “avaliação”, mas fato histórico, que o crime foi inventado na “administração de um governo militar”, isto é, na ditadura. E por que “não prospera”? Se o general apresenta para suas sentenças tantos elementos de comprovação quanto em seus artigos, temos aí outra evidência pelo fim da Justiça Militar.

Mas o central, no trecho, é: não é porque a ditadura acabou que vocês podem fazer baderna. Um recado bem claro.

O segundo ponto da defesa do julgamento militar, no texto do general, é que são punidas as ofensas, mas as críticas não. Está já no título: “Críticas, sim; ofensas, não”.

Ele diz que “as Forças Armadas, como qualquer outra instituição, não estão livres de cometer erros e tomar decisões equivocadas”. (Que bom que ele falou, se não ninguém desconfiaria.) Neste caso, as críticas seriam aceitas – desde que “construtivas” (“a crítica, que serve como alerta, que surge como uma proposta de correção de rumo”).

Mas em nenhum momento explica como se diferencia uma crítica de uma ofensa.

Quando eu digo que o texto dele é “um primor de má fé e cinismo”, por exemplo, eu estou criticando. Ele talvez diga que foi ofendido.

Justamente por isso, não é uma boa ideia dar ao criticado o poder de decidir se foi ofendido ou não. Ele é simultaneamente parte e juiz. Tudo bem que no Brasil, depois de Sergio Moro, isto parece ter se tornado a regra, mas vai de encontro a preceitos básicos da justiça.

Ele também não explica por que outras instituições se defendem de supostas ofensas na justiça comum, mas as Forças Armadas, tão frágeis, tão delicadas, precisam de um tribunal só para elas.

A justificativa – discutível – para a existência de uma Justiça Militar em tempos de paz é a especificidade de suas funções, que faria com que os civis tivessem dificuldade de entender os crimes eventualmente cometidos. Para crimes contra a honra, porém, tal justificativa é totalmente vazia.

O fato é que as Forças Armadas brasileiras – em particular, o Exército – estão em momento de completo desvelamento de seus graves problemas.

Não há um crime deste governo de que elas não sejam cúmplices. Olhe para o negacionismo, para o desprezo pela vida dos brasileiros, para a corrupção, para o autoritarismo, para o golpismo, para o aparelhamento do Estado, para a incompetência: sempre vai aparecer um general no caminho.

A exposição está fazendo mal à imagem das Forças Armadas. Segundo as pesquisas de opinião (que sempre devem ser lidas cum grano salis, mas vá lá), o percentual de brasileiros que confiavam nelas caiu de 70%, antes do início do governo Bolsonaro, para 58% no mês passado.

Uma queda de 12 pontos percentuais. A única instituição que sofreu baque similar foi a presidência da República, que perdeu 13 pontos.

Diante disto, a solução não é corrigir os desvios, emendar as Forças Armadas – é bem verdade que, dado o grau de degeneração que elas alcançaram, a emenda provavelmente exigiria sua refundação.

A solução é intimidar os críticos. O Código Penal Militar não foi apenas imposto pela ditadura – é uma permanência dela.