O “Contador de Auschwitz” vai a julgamento no último grande processo por crimes do nazismo

Atualizado em 23 de abril de 2015 às 8:56
"O trabalho liberta"
“O trabalho liberta”

Publicado na DW.

 

“Numa noite de janeiro de 1943 eu vi pela primeira vez os judeus serem mortos com gás. Ouvi os gritos de pânico das pessoas na câmara de gás quando as portas se fecharam”, contou Oskar Gröning a jornais alemães em 2005, ao descrever o período em que trabalhou em Auschwitz.

Durante dois anos, de setembro de 1942 a outubro de 1944, ele serviu no campo de extermínio à Waffen-SS, tropa de elite das Forças Armadas nazistas. Sua função era administrar o dinheiro, joias e outros objetos de valor dos deportados – o que lhe valeu o apelido de “contador de Auschwitz”, dado pela mídia alemã.

O próprio ex-funcionário do regime nacional-socialista se considera inocente. “Não matei ninguém. Eu era só uma peça de engrenagem na máquina de extermínio. Eu não fui um criminoso.”

Malas e câmaras de gás

Apesar disso, dez anos depois, Gröning terá que responder à Justiça. Nesta terça-feira (21/04) começa na cidade de Lüneburg, na Baixa Saxônia, o que possivelmente será o último grande processo na Alemanha por crimes do nazismo.

O réu de 93 anos é acusado de cumplicidade no assassinato de pelos 300 mil pessoas. Por uma questão de apresentação de provas, limita-se à assim chamada “Operação Hungria” a queixa da Promotoria Pública de Hannover, responsável na Baixa Saxônia pela persecução de crimes nazistas.

De 16 de maio a 11 de julho, a SS deportou cerca de 425 mil judeus da Hungria para Auschwitz, dos quais 300 mil foram levados para a câmara de gás e executados, assim que desembarcaram. Nesses dois meses, um total de 137 trens chegou à fábrica da morte dos nazistas. Gröning também trabalhava diretamente na plataforma, participando da seleção, em que eram impiedosamente separados os grupos dos “aptos ao trabalho” e dos “inúteis”.

Ele sabia que os “descartados” não eram levados aos supostos chuveiros para “desinfecção”, mas sim diretamente enviados à morte. Uma das tarefas do “Contador” era recolher da plataforma as bagagens deixadas pelos condenados. O objetivo era “ocultar, dos detentos que viriam, os indícios do homicídio em massa”, segundo consta dos autos de acusação, que totalizam 85 páginas.

Gröning também era encarregado de contar o dinheiro encontrado nas malas, registrá-lo e encaminhá-lo à sede da SS em Berlim. Através de suas atividades, conclui a acusação, ele apoiou a matança sistemática do regime nazista.

Jurisprudência

Nascido em 10 de junho de 1921, Oskar Gröning era um jovem de 21 anos quando começou o trabalho no campo de concentração. Agora ele é um nonagenário. “O processo chega com décadas de atraso”, constata Christoph Heubner, vice-presidente do Comitê Internacional de Auschwitz. “O réu passou as décadas mais importantes de sua vida em paz e liberdade, no seio da sociedade.”

O fato de a expectativa de vida média na Alemanha ser de cerca de 80 anos já justifica, por si só, a pergunta: por que o caso Gröning se fez esperar tanto? Por que o “Contador de Auschwitz” terá que enfrentar a Justiça assim tão tarde, no fim da vida? Ainda mais considerando-se que a central alemã para investigação de crimes nazistas, sediada em Ludwigsburg, funciona desde 1958?

Um dos motivos foi uma mudança na jurisprudência. Nos anos 60 e 70 valia a premissa de que era necessário provar a participação do acusado num caso concreto. Isso mudou com a decisão do Tribunal Regional de Munique no caso de John Demjanjuk. O ex-guarda do campo de Sobibor, hoje morto, foi condenado em 2011 a cinco anos de prisão, por cumplicidade no assassinato de mais de 28 mil judeus, embora não tenha sido possível provar uma participação concreta.

A SS empregou cerca de 7 mil funcionários entre 1940 e 1945 somente em Auschwitz. “Teria sido preciso processar milhares de homens e mulheres na República Federal da Alemanha, se os critérios de hoje tivesse vigorado antes”, comenta o advogado Thomas Walther, que representa mais de 30 mandantes na ação coletiva contra Gröning. “Mas não se queria isso.”

Também Oskar Gröning nunca foi punido por seus serviços em Auschwitz. A Justiça alemã já o tivera na mira 30 anos atrás, mas o processo foi suspenso em 1985 por falta de provas. Acreditou-se na alegação de que ele não havia participado diretamente nas mortes, mas sim “só tomava conta das malas”.

Justiça, ainda que tardia

O Tribunal de Lüneburg reservou 27 audiências para o julgamento, cuja sentença deve ser pronunciada no fim de julho. Mais de 60 autores do processo prestarão testemunho, vindos de Estados Unidos, Hungria, Canadá e Israel.

Uma das participantes da ação coletiva é Eva Pusztai, de Budapeste. “Só imaginar que o acusado revirou a mala feita pela minha mãe, em lágrimas, e teve nas mãos as roupas de Gilike, a minha irmãzinha assassinada no mesmo dia, me faz desesperar. Por uma vez quero estar numa sala de tribunal alemã e dizer o que eu vi”, contou a sobrevivente de Auschwitz ao jornal Die Welt.

 

Oskar Gröening
Oskar Gröening