“O coronel veio e disse ‘quem manda sou eu'”: pediatra de indígenas exonerado sem explicação no MS fala ao DCM

Atualizado em 7 de julho de 2021 às 16:11
Zelik Trajber

O pediatra Zelik Trajber foi exonerado após mais de 20 anos dedicados a salvar vidas nas aldeias de Dourados.

Polonês naturalizado brasileiro, era chefe das Equipes Multidisciplinares do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena em Mato Grosso do Sul.

Assim como ele, outros profissionais que também tentaram mudar o cenário caótico na saúde indígena tiveram o mesmo destino. O prazo desde que foi avisado da demissão sequer chegou ao fim quando anunciaram seu desligamento.

As unidades de apoio e proteção médica as populações de origem, ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS), estão em fase de desmonte e abandono pelos órgãos competentes.

Trajber falou com o DCM sobre o desastre.

DCM: O Governo Bolsonaro tem ingerência direta no caótico quadro de abandono as comunidades indígenas?

Zelik Trajber: Se o problema já vinha se agravando, imagina o que aconteceu depois da eleição desse governo. Eram muito claros os objetivos de Bolsonaro, ele falava explicitamente que mais nenhuma terra indígena seria demarcada e que ele iria facilitar a entrada de agronegócio, de madeireiros, mineradores em terras indígenas, algo que esta acontecendo de acordo que ele vinha propondo.

É óbvio que de lá para cá as coisas só se agravaram. O primeiro ministro que assumiu a Saúde, Luiz Henrique Mandetta, vinha do Mato Grosso do Sul, estado onde Dourados se localiza. Ele falava expressamente que não poderia existir o subsistema, que como um sistema paralelo.

Essa discussão gerou grande movimento em todos os territórios indígenas do país. O que vem acontecendo progressivamente é a nomeação de dirigentes da saúde indígena ligados às Forças Armadas.

Para dirigir o nosso distrito foi colocado um indivíduo que não tinha nenhum conhecimento na saúde, muito menos em terras indígenas. Ele não aguentou o tranco e acabou sendo substituído por um coronel, o coronel Joe (Saccenti Junior), que dizia ter vindo simplesmente “para colocar ordem na casa” — que nada mais significa que “quem manda sou eu”. Existe todo um trabalho de controle social dentro da saúde indígena, com os conselhos locais, conselho distrital e fórum de presidentes ao nível nacional.

Pouco a pouco eles foram cooptando alguns indígenas para apoiar esse coronel. Nunca mais houve uma reunião de conselho distrital, o indígena que estava de presidente foi destituído pelo seu conselho local por entenderem que ele não era mais representativo dentro da comunidade e pelas posturas que vinha assumindo junto ao coronel.

O que mudou com o coronel?

O polo de Dourados sempre teve uma forma muito democrática de estabelecer políticas de saúde. Fazíamos reuniões mensais de todos os profissionais, junto a técnicos de enfermagem e agentes de saúde, para discutir a situação, o perfil epidemiológico e propor políticas.

Obviamente, sempre havia posturas críticas, e isso não parou até a entrada desse coronel que, simplesmente, eliminou todas as reuniões. Uma das primeiras profissionais mandadas embora foi a nossa coordenadora técnica, uma enfermeira indígena, que conhecemos desde que era menina. Após se formar, trabalhou uns dois, três anos no hospital, e a trouxemos para atuar nas aldeias. Depois de três anos, praticamente trabalhando na ponta, veio para coordenação, onde vinha desempenhando muito bem o seu papel.

As articulações com os grupos de apoio e universidades foram interpretadas como vazamento de informações internas da instituição. A coordenadora foi acusada, além de transmitir essas informações para imprensa, de não controlar o horário dos trabalhadores. Foi o suficiente para que eles a mandassem embora.

Trouxeram meio que na marra, para coordenação, a única enfermeira não indígena que continuava trabalhando no polo, algo que ela não queria, mas não tinha muita escolha. Ela assumiu o cargo, e em seguida perdeu pai e mãe para a covid-19, o que a desestruturou bastante. Quando foi chamada pelo Ministério Público para explicar o que estava acontecendo, entrou em parafuso e se afastou, pegou atestado e agora se encontra de férias.

Além dessa enfermeira, ele começou a mandar embora outros profissionais. Tudo isso, em coordenação com a chefia do polo, que é uma profissional do quadro da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), oriunda da velha FUNASA e da velha Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM) e que adora se sentir poderosa mandando gente embora.

Despediram a melhor psicóloga que nós tínhamos em Amambai, que fazia um trabalho maravilhoso com as rezadeiras, parteiras, sem justificativa nenhuma.

Aldeia em Dourados (MS)

Ao longo dos 20 anos de sua permanência nesta trincheira de resistência, houve algum avanço nos cuidados das nações indígenas?

Vim para o Mato Grosso do Sul em janeiro de 2001 e fui um dos primeiros profissionais contratados. Quando cheguei, a realidade era bastante dramática, principalmente entre a população guarani kaiowá. Nos primeiros levantamentos que pudemos realizar, verificamos haver um índice de mortalidade infantil de 140 por mil nascidos vivos, ou seja, a cada 1000 nascidos vivos, 140 crianças faleciam antes de completar um ano. Um problema básico que havia era a desnutrição.

Neste primeiro levantamento, pudemos identificar que cerca de 15% das crianças menores de 5 anos eram classificadas como desnutridas, o que era problemático. Além desse problema, existia uma alta incidência de tuberculose, tanto que havia um hospital com uma ala específica para tratamento da doença em população indígena, inclusive como referência para outros estados.

Fechamos essa ala de tratamento da tuberculose e começamos a fazer o acompanhamento em domicílio, um procedimento supervisionado pela equipe, liberando a sala do hospital, que aproveitamos para montar um centro de recuperação nutricional para as crianças.

No polo de Dourados, temos hoje seis equipes, quatro atendem dentro da reserva, cada uma delas é responsável por uma população de aproximadamente 4 mil indígenas e mais duas equipes volantes que atendem aldeias menores e acampamentos.

Como médico, qual a sua leitura do enfrentamento da pandemia, não só com os povos indígenas, mas, em geral, que cenário você consegue vislumbrar para o Brasil?

Quanto ao enfrentamento da pandemia em terras indígenas, como já mencionado, facilitando a entrada de garimpeiros, madeireiros e agronegócios, não temos nada de bom para esperar.

Nós perdemos todas as oportunidades de levar um trabalho sério, ficamos para trás no que era o mais importante, entender tudo que vinha acontecendo já em outros países, na Europa.

Digo sempre que existem dois problemas, um é a pandemia e o outro é o pandemônio. Até quando vamos suportar ser os párias no mundo? O respeito que tivemos já não temos mais. Hoje, falou que é brasileiro é pior que xingar a mãe.