“Quer dizer que vou para o inferno, mesmo se eu for um cara bom, generoso?”
A resposta é seca. “Vai.”
Estou num táxi, numa visita a São Paulo. Fiz uma viagem longa. Peguei um ônibus em Cumbica que me deixou na Faria Lima, e lá apanhei um táxi para casa.
Ao passar por uma igreja o motorista me disse frequentá-la. Naquela final de semana, uma holandesa fora lá dizer como se curara do câncer, ele me conta. Ela falava em inglês e um tradutor vertia o depoimento. Não há dúvida em sua voz. Em geral não alimento esse tipo de conversa. Faço apenas um protocolar ‘hmmm”, e minha mente viaja. Mas, talvez pelo cansaço, talvez pela irritação ao ver a invasão de assuntos religiosos na campanha, decido dizer o que acho.
“Não acredito em nada disso”, aviso. “Sou ateu. E não gosto desses pastores picaretas que exploram a fé dos pobres. Eles ficam riquíssimos.”
“A bíblia explica tudo. Salomão, Davi. Todos eles tinham luxo e riquezas.”
“Mas eles eram reis, não pastores. Pastor era Jesus, João Batista. Luxo zero.”
“O dinheiro é da igreja.”
“E dos pastores”, eu digo.
“Eu não queria aquele dinheiro por nada. Você só tem dor de cabeça”, o motorista me diz. É um fanático afável. Ri para mim.
Percebo que os pregadores já trataram de justificar sua fortuna.
“O Alckmin está sempre naquela igreja”, o motorista diz. “Ele sabe que quem não crê vai para o inferno.”
Hmmm. Vou para o inferno, a despeito de meus atos?
Vou, me informa o motorista. Mas calma.
“Deus dá todas as chances. Se na hora de morrer o senhor pedir clemência, Deus dá.”
“E se não pedir …”
“Inferno.”
Digo a ele que, francamente, não me preocupo com isso. Para mim, o fim é o fim. Pó, poeira, o imenso olvido. Ainda bem, porque a vida a partir de um ponto deixa de ser bênção para ser anátema, e ninguém merece passar de novo por todas as dores e decepções do caminho.
“Existe uma outra vida”, ele me diz.
“Só acredito no que vejo e toco.”
“Pois é. Eu vi.”
“O quê?”
“A outra vida. Tive uma visão.”
“Então eu vou para o inferno.”
“O senhor falou em Jesus. Já é um começo.”
Chegamos ao destino. Pago a ele. Dou uma gorjeta boa.
“Deus cuidou da sua gorjeta”, digo.
Ele me sorri e parte, invulnerável em sua fé completa, total, cegamente genuína.