O crime na ditadura que virou símbolo do abuso infantil. Por Marcos Sacramento

Atualizado em 18 de maio de 2018 às 10:05
Página do jornal ‘A Gazeta’, do Espírito Santo, com notícia da morte de Araceli (Foto: CEDOC/ A Gazeta)

Existe a ilusão entre os saudosistas da ditadura de 64 de que o período era livre da criminalidade. Se eles pudessem rasurar a história, talvez omitiriam o crime que inspirou a criação do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

O ano era 1973, época do “milagre econômico brasileiro” e auge da repressão contra opositores políticos. Araceli Cabrera Crespo foi raptada no dia 18 de maio, quando esperava pelo ônibus na volta da escola, em Vitória, Espírito Santo.

Dias depois, a menina de oito anos de idade foi encontrada morta na mata aos fundos de um hospital, localizado cerca de um quilômetro de onde ela foi apanhada.

Seu corpo tinha marcas de agressões, violência sexual e o rosto desfigurado por ácido. Logo apareceram os suspeitos: Paulo Helal e Dantinho Michelini, herdeiros de duas famílias tradicionais capixabas.

As investigações davam conta de que a menina havia sido dopada e violentada em uma orgia regada a drogas. Por causa da crueldade e do possível envolvimento de jovens ricos, o homicídio caiu nas graças da imprensa sensacionalista.

A ânsia por manchetes diárias nos jornais e o predomínio de provas testemunhais cercou o crime de histórias rocambolescas ao longo de um processo com 35 volumes, 8 mil páginas e mais de 300 testemunhas.

Surgiram rumores de que a mãe de Araceli, a boliviana Lola Cabrera, fornecia drogas para os envolvidos, que o corpo da menina ficara em um freezer no restaurante de um dos suspeitos antes de ser jogado na mata e que o cadáver fora reconhecido após o cachorro de estimação de Araceli, sugestivamente chamado Radar, farejar o corpo no necrotério. Levantaram, inclusive, a hipótese de que Araceli estaria viva na Bolívia, para onde a mãe havia se mudado alguns anos após o crime. Nada disso foi comprovado.

No entanto, havia elementos nem tão folclóricos, como as mortes suspeitas de testemunhas, uma suposta tentativa de suborno a um jornalista e a ascensão política de um policial civil, tornando-se deputado com a promessa de solucionar o crime.

Os acusados chegaram a ser presos em 1977, julgados e condenados em 1980, mas em 1991 foram absolvidos por falta de provas.  A única certeza no processo é que uma criança foi brutalmente assassinada.

Desde a morte de Araceli milhares de outras meninas e meninos foram mortos ou violentados no Brasil. De acordo com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, em 2015 foram 10,9 mil homicídios na faixa etária entre 0 e 19 anos.

Outra pesquisa, realizada pelo sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva) do Ministério da Saúde, mostrou que o abuso sexual é o segundo tipo de violência mais comum contra crianças, ficando atrás apenas das notificações de negligência e abandono.

O crime de 18 de maio de 1973 deixou uma pergunta sem resposta: quem matou Araceli? Com as estatísticas assustadoras a pergunta se repete Brasil afora, só muda o nome da criança.