O “desmantelamento” do Brasil como nação. Por J. Carlos de Assis

Atualizado em 27 de agosto de 2023 às 12:19
Mapa do Brasil “recriado” por Gunther Fehlinger. Foto: reprodução

Não se pode subestimar simplesmente como ridículas as ameaças do lobista Gunther Fehlinger, um propagandista da expansão da OTAN, para que essa aliança militar promova o “desmantelamento” do Brasil por causa de sua aproximação com a Rússia, no âmbito do BRICS. De fato, a OTAN não teve escrúpulo em virtualmente destruir países como Iugoslávia, Checoslováquia e Líbia por motivos geopolíticos. Isso, para os belicistas da organização, justifica o ataque também ao Brasil.

O nó da questão é Rússia e China. A OTAN – ou os EUA, que a controlam – veem o BRICS, agora com mais seis integrantes, como ameaça definitiva a seu domínio geopolítico absoluto do mundo. O objetivo de Fehlinger é, pois, liquidar com o BRICS, com a desculpa de defender a “democracia” contra o que chama do “genocida” Vladimir Putin. Como destruir todos os Estados do BRICS, militarmente, seria uma guerra mundial catastrófica, ele propõe começar pelo Brasil, um lado mais fraco.

Sua ameaça só seria absurda se, internamente, o país não estivesse efetivamente dividido. Mas está. O bolsonarismo é ainda uma parte relevante do eleitorado, até o ponto de seus integrantes honrarem como heroicos e “patriotas” os atentados de 8 de janeiro, num dos Estados mais importantes da Federação. Não só isso. A prova cabal da vulnerabilidade brasileira ao “desmantelamento” geográfico foi o “desmantelamento” temporário da democracia por ocasião do golpe contra Dilma Roussef em 2016.

Depois da derrota vergonhosa no Afeganistão, os EUA haviam proclamado solenemente, através do primeiro discurso de Joe Biden na Assemblia Geral da ONU, em setembro de 2021, o compromisso com a diplomacia como meio de solução dos conflitos entre os estados. Pouco depois, porém, ele tomou a iniciativa de articular contra o resto do mundo um bloco de mais de 100 países ditos “democráticos”, discriminados por serem dirigidos por líderes ou regimes supostamente autoritários.

Começou aí a segunda Guerra Fria. O instrumento principal dela já não é mais o confronto direto através da intervenção armada dos EUA contra estados simpatizantes do bloco rival, mas o “desmantelamento” desses mediante sublevações internas instigadas de fora. No Brasil, após a criação do BRICS, tivemos, em 2014/2015, grandes manifestações manipuladas, e a derrubada de Dilma, além do lawfare da Lava Jato contra Lula. Só isso basta para dar conta de nossa vulnerabilidade.

Lula, Xi Jinping, Cyril Ramaphosa, Narendra Modi e Sergey Lavrov, em reunião do BRICS. Foto: Alet Pretorius/AFP

Portanto, se corremos o risco de “desmantelamento”, não será por conta das bravatas de Fehlinger. Será em razão de inimigos internos de nossa autonomia política, instigados pelos que pretendem segurar de qualquer forma, do exterior, a hegemonia geopolítica dos EUA no mundo. Devem, sim, ser levados a sério. Principalmente porque não se trata de um episódio isolado na história da Humanidade. É uma corrente que se forma com força crescente no planeta, pela retomada geral do fascismo.

É muito provável que o povo politicamente primata norte-americana eleja de novo, como presidente, o neofascista e criminoso confesso, Donald Trump. Na Europa já há neofascistas no poder na Hungria e na Itália. Na Argentina ainda não sabemos para onde vai a política, mas as perspectivas são sombrias, depois da vitória de Rafael Milei nas primárias. Portanto, mesmo fora do poder formal, mas inspirado de fora, Bolsonaro terá aliados para unir neofascismo, separatismo gaúcho e “desmantelamento” do país.

Por vivermos tradicionalmente num país pacífico, pelo menos desde a Segunda Guerra, nos acostumamos a acompanhar os eventos mundiais como situações que não nos dizem respeito. Jogamos um jogo inteligente na Guerra Fria, nos equilibrando entre os blocos em conflito, e tirando algum proveito disso. Agora nos defrontamos com um quadro inteiramente novo. Há hegemonias em disputa. A geopolítica e a econômica. O lado ocidental não quer nos dar o privilégio da neutralidade.

Para avaliar a originalidade da situação atual, é suficiente considerar que até um pequeno país tradicionalmente neutro durante a primeira Guerra Fria, como a Finlândia, foi forçado a tomar partido a seu favor pelos EUA, diante da guerra na Ucrânia. A firme posição brasileira de condenar a guerra, mas buscar a paz negociada, não é tolerada, na medida em que o ocidente exige a rendição incondicional da Rússia. Mesmo Kiev, em 2022, teve que rasgar um compromisso de paz com Moscou forçada pelos EUA.

É uma ilusão imaginar que os EUA desistirão, sem luta, de insistir em manter sua posição hegemônica nos países em que ainda a detêm. O Brasil é o alvo mais atrativo. Pertencente ao lado ocidental pela geografia, e culturalmente ligado a ele pela História, o país é visto por Washington como um vassalo a ser manietado. Por isso o Sul Global não foi levado muito a sério quando o BRICS foi criado, tendo em vista as diferenças fundamentais, em vários aspectos, entre o Brasil e seus integrantes orientais.

Contudo, a conferência de Johanesburgo mostrou que há mais interesses comuns entre os BRICS do que supunham os seus detratores. Com a expansão do bloco, ele se tornou quase metade do PIB mundial e o maior produtor de petróleo, de gás e de alimentos. É natural que figuras como Fehlinger vocalizem o desespero da Europa em sua posição de fraqueza relativa. O pior conselheiro do desespero é a temeridade. Daí que a ameaça estapafúrdia de “desmantelamento” do país deve ser levada a sério

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