
Na manhã fria de domingo, 19 de outubro de 2025, Paris acordou com sirenes em vez de violinos. Às 9h30, quatro homens mascarados estacionaram um caminhão discreto ao lado da ala Denon, no coração do Museu do Louvre. Vestiam coletes amarelos, como se fossem técnicos de manutenção. Em minutos, ergueram uma escada hidráulica até a janela da Galeria Apolo, quebraram o vidro, abriram duas vitrines e levaram oito joias da coroa francesa. Tudo cronometrado: sete minutos.
Quando a polícia chegou, restava apenas o vazio — e um retrato trincado de si mesma, onde antes reluziam diamantes, esmeraldas e a memória imperial de Napoleão.
O roubo das joias foi cirúrgico. Calculado com a frieza de quem estuda a rotina do museu mais visitado do planeta. Os ladrões sabiam que, naquele horário, o Louvre ainda estava abrindo as portas. Sabiam também que 30% das câmeras das galerias — conforme um relatório do Tribunal de Contas francês — não funcionavam. Fugiram por ruas já cheias de turistas e desapareceram em motos, como se Paris tivesse se tornado cúmplice do próprio roubo.
Horas depois, o ministro da Justiça declarou: “É como se todos os franceses tivessem sido roubados.”
Sim — mas não só os franceses.
O museu que nasceu do saque
O Louvre é o orgulho francês, mas também seu retrato mais incômodo.
Erguido como fortaleza em 1190 por Filipe Augusto para proteger Paris das invasões normandas, transformado em palácio real durante o Renascimento e, após a Revolução Francesa, convertido em museu nacional em 10 de agosto de 1793, tornou-se o guardião daquilo que a França chama de “patrimônio universal”. Mas a universalidade, nesse caso, nasceu da conquista.
Foi Napoleão Bonaparte quem primeiro entendeu que conquistar territórios era também conquistar suas almas artísticas. Entre 1796 e 1815, ao invadir a Itália, o Egito e a Bélgica, impunha cláusulas humilhantes: as cidades derrotadas deviam enviar seus tesouros para Paris. Assim nasceu o primeiro Louvre imperial — abarrotado de estátuas gregas, telas renascentistas, múmias egípcias e pergaminhos confiscados sob a bandeira da civilização.
O Código de Hamurabi chegou a Paris como “presente diplomático” — na verdade, um espólio arqueológico.
A Vênus de Milo foi retirada de seu solo original para se tornar símbolo da França.
A Vitória de Samotrácia, arrancada de uma ilha grega, foi içada na escadaria do museu como se o triunfo alheio fosse francês.
O Egito, então, foi quase um saque institucionalizado. As expedições napoleônicas abriram tumbas, arrancaram sarcófagos e transportaram centenas de peças por navio. A “missão científica” que acompanhava o exército produziu o monumental Descrição do Egito — e o vazio deixado nas margens do Nilo.
Hoje, a ala egípcia do Louvre exibe joias de uma civilização eterna: o Escriba Sentado, de olhar vivo após quatro milênios; a colossal estátua de Ramsés II; o Sarcófago de Emehetep coberto de hieróglifos intactos; e o Busto de Akhenaton, símbolo da primeira revolução espiritual da humanidade.
Muitos visitantes acreditam que o sarcófago de Tutancâmon está ali, mas ele jamais deixou o Egito — permanece sob guarda do Museu do Cairo, hoje transferido para o Grand Egyptian Museum, em Gizé. A lenda, contudo, ajuda a compreender a força do fascínio que o Louvre exerce sobre o imaginário do mundo.
O Louvre que conheci

Estive cinco vezes no Louvre ao longo dos meus 66 anos de vida. Em todas elas — da primeira visita aos 24 anos até a mais recente — experimentei o mesmo arrebatamento que se sente ao cruzar um portal invisível entre o humano e o infinito.
Naquela primeira vez, minha curiosidade juvenil foi sequestrada por um sentimento que só os grandes encontros provocam: a vertigem diante do gênio humano, a constatação de que a engenhosidade é o idioma que sobrevive às ruínas.
Diante da Mona Lisa, da Vitória de Samotrácia e dos corredores intermináveis onde a história parece respirar, compreendi que a criação humana se derrama como um rio no leito dos séculos — acima das fronteiras, das bandeiras e dos nacionalismos.
O Louvre sempre me causou esse duplo fascínio: maravilhamento e desconforto.
Maravilhamento pela capacidade humana de transformar o instante em eternidade; desconforto por saber que, sob o brilho das vitrines, repousam memórias arrancadas de outros povos.
Cada retorno ao museu foi também um reencontro com o paradoxo da civilização — o mesmo que agora se revela em sua forma mais literal.
A ironia do destino
Dois séculos depois das conquistas napoleônicas, o império virou museu, mas o museu jamais deixou de carregar o império dentro de si.
As obras que antes chegaram em carroças e galeões agora repousam sob sensores de movimento, protegidas por alarmes e guardadas por discursos sobre “preservação”.
E, no entanto, nesta manhã de outubro, o alarme soou de dentro — não como aviso, mas como metáfora: o guardião sentiu o que é perder o que guardava.
O Louvre, acostumado a deter o espólio dos outros, sentiu na pele o que é ser espoliado.
A frase do ministro — “é como se todos os franceses tivessem sido roubados” — ecoou como confissão involuntária: sim, a dor do roubo é insuportável. E foi essa dor que a França, por séculos, infligiu ao mundo.
Povos inteiros viram seus deuses empacotados, seus ídolos embarcados, seus séculos encerrados em caixas com destino a Paris.
Hoje, egípcios, gregos, turcos, nigerianos e italianos pedem de volta o que lhes foi tirado. Alguns processos correm na diplomacia: o Egito quer a restituição de estátuas; a Itália reivindica sete objetos arqueológicos; a Grécia insiste no retorno das esculturas do Partenon — repartidas entre Londres e Paris.
O roubo do Louvre, portanto, é mais que uma falha de segurança. É uma imagem invertida da história. O império que colecionou o mundo acorda agora com o mundo colecionando a sua vergonha.
Paris, capital da ironia

Enquanto as investigações prosseguem, os franceses caminham diante do museu fechado. Fotografam a fachada, comentam a audácia dos ladrões. Alguns se sentem ultrajados. Outros, envergonhados.
O governo promete reforçar a segurança nacional do patrimônio, revisar protocolos, instalar câmeras. Mas nenhuma tecnologia é capaz de vigiar o passado.
Na história, o Louvre já foi palco de outros roubos: em 21 de agosto de 1911, quando a Mona Lisa desapareceu — levada por Vincenzo Peruggia, um funcionário italiano que acreditava estar “devolvendo” a obra ao seu país; em 1976, quando a espada cravejada de pedras preciosas usada por Carlos X na coroação evaporou; em 1983, quando armaduras renascentistas sumiram; em 1989, quando uma armadura italiana foi roubada e só voltou em 2021.
O museu mais vigiado do mundo, ironicamente, vive sendo roubado. Talvez porque não exista alarme contra o tempo — e o tempo cobra.
Quando o roubo vira consciência
Este novo furto, calculado e silencioso, talvez tenha um efeito que Napoleão jamais imaginou: devolver à França um pouco do desconforto moral que espalhou pelo planeta.
A dor que hoje o Louvre sente — a perda de algo grandioso, carregado de história e valor — é exatamente o que tantas civilizações sentiram ao ver seus deuses, papiros e esculturas partindo rumo ao “progresso europeu”.
Não se trata de negar o Louvre — ele é um dos templos mais extraordinários da humanidade. Mas é preciso repensá-lo: não apenas como guardião da criação humana, mas como testemunha de um saque global que a arte sublimou.
A civilização começa quando um povo aprende a proteger o que é seu; e amadurece quando reconhece o que é dos outros.
O Louvre, ferido e introspectivo, talvez esteja diante de sua obra mais difícil: restaurar sua própria essência.
Entre o brilho das joias roubadas e o peso das peças que guarda, há uma lição que não cabe em vitrines — a de que nenhum museu é maior que a verdade que omite.
O Louvre foi roubado.
Mas, talvez pela primeira vez, o roubo sirva não para empobrecer — e sim para jogar luz sobre os crimes que a História se recusa a enterrar.