O direito ao aborto e o Estado não-laico. Por Maringoni

Atualizado em 31 de dezembro de 2020 às 10:15
 Ronaldo Schemidt-19.fev.20/AFP

Originalmente publicado em FACEBOOK

Por Gilberto Maringoni

Há algo muito importante a se levar em conta na aprovação da descriminalização do aborto na Argentina: a pressão da Igreja Católica. Fala-se muito – na comparação com o Brasil – de que as condições aqui são mais difíceis, pelo peso das religiões evangélico-pentecostais e do catolicismo, com forte poder político acumulado ao longo de décadas.

No entanto, há uma diferença gritante. Aqui, o Estado é laico e lá não.

CONQUISTA DA REPÚBLICA

A laicidade do Estado brasileiro é a grande conquista da Constituição de 1891, a primeira da República. Vamos a ela:

“Art. 11. E’ vedado aos Estados, como á União: (…)

2º Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercicio de cultos religiosos; (…)

Art. 72. (…)

§ 3º Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum

§ 4º A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.

§ 5º Os cemiterios terão caracter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não offendam a moral publica e as leis.

§ 6º Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos publicos.

§ 7º Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção official, nem terá relações de dependencia, ou alliança com o Governo da União, ou o dos Estados. (…)

§ 28. Por motivo de crença ou de funcção religiosa, nenhum cidadão brazileiro poderá ser privado de seus direitos civis e politicos, nem exhimir-se do cumprimento de qualquer dever civico”.

Embora vários governos – em especial o atual – tenham atentado contra essa característica fundante da República, a influência religiosa não chegou ao ponto de alterar as bases da nossa institucionalidade.

O ESTADO CATÓLICO ARGENTINO

Vejamos agora a Constituição do país vizinho, logo em seu início:

“Artículo 2.- El Gobierno federal sostiene el culto católico apostólico romano”.

Para compensar, a Carta, mais adiante, esclarece:

“Artículo 14.- Todos los habitantes de la Nación gozan de los siguientes derechos conforme a las leyes que reglamenten su ejercicio; a saber: (…); de profesar libremente su culto; de enseñar y aprender”.

Os artigos 2 e 14 constam da Constituição original da Confederação Argentina. Ela sacramentou a unificação do Estado, até ali fragmentado em mais de uma dezena de províncias. A Lei Maior foi aprovada após décadas de lutas político-militares em 1o. de maio de 1853. Tais artigos não foram modificados e seguem em vigor até hoje.

Em certo sentido, para a vida prática, eles se autoanulam, embora o caráter do Estado – definido por “governo”, na Constituição – não seja laico.

Se fossemos nos fiar apenas na letra da lei, o direito ao aborto sequer seria colocado em pauta no país, dado o peso da Igreja Católica, que em grande parte apoiou a ditadura militar (1976-83). Mesmo o Papa mais progressista da História se perfila, nesse quesito, com a posição oficial da Santa Sé.

Vale sempre ressaltar que vale mais a luta política do que normas tidas e estabelecidas como cláusulas pétreas. Para bem ou para mal.

(A partir de uma observação de João Falcão).