O Direito e a política em uma perspectiva menos ingênua. Por Afrânio Silva Jardim

Atualizado em 15 de setembro de 2019 às 8:10
Justiça. Foto: Wikimedia Commons

Publicado originalmente na fanpage do autor no Facebook

POR AFRÂNIO SILVA JARDIM, professor associado de Direito da UERJ

O DIREITO E A POLÍTICA EM UMA PERSPECTIVA MENOS INGÊNUA

O Direito não é produto da natureza. Ele só existe na “cabeça” do ser humano. Vale dizer, o Direito pertence ao “mundo da cultura”. Sem o ser humano, desaparece o Direito, pois não haverá relações pessoais para serem reguladas.

Por outro lado, o “ser” não será “humano” se não viver em sociedade, travando relações intersubjetivas com seus semelhantes. Ademais, não há sociedade sem normas jurídicas que regulem a sua estrutura e o seu funcionamento.

Na verdade, é preciso compreender que o Direito reflete as relações econômicas que estão na base material de uma determinada sociedade. Ele é, por ela, condicionado. Impensável um Direito capitalista em uma sociedade verdadeiramente socialista e vice-versa.

As normas jurídicas são impostas ou negociadas por quem exerce o poder político, respeitadas as correlações de forças de uma determinada sociedade. No sistema capitalista, quem detém o poder político estará intimamente ligado ao poder econômico.

Assim, em sendo normativo e valorativo (axiológico), o Direito sofre influência direta dos valores que fundamentam o poder político que o cria. Em uma sociedade capitalista, o poder econômico se faz muito presente na criação das normas jurídicas, conforme salientado acima.

Acresce que a “contaminação” política do Direito se apresenta, outrossim, na sua aplicação aos casos concretos.

Os juízes interpretam as normas jurídicas e valoram os fatos sobre os quais elas devem incidir “contaminados” pela sua “cultura”, “contaminados” pelas suas “visões de mundo”, vale dizer, pelo quadro ou escala de valores que absorveram nas suas vidas em sociedade. Nesta perspectiva, todo julgamento é um ato político (no sentido técnico do termo).

Desta forma, é uma mistificação a assertiva de que o Direito é neutro e de que a sua aplicação aos casos concretos é neutra também. Direito e justiça são “categorias” distintas …

Em sendo normativo, o Direito sempre será conservador, na medida em que não pode acompanhar as rápidas evoluções que ocorrem nas sociedades. Os seus criadores e aplicadores são homens pertencentes a determinadas classes sociais e reproduzem os valores reinantes nestes segmentos sociais.

Desta forma, percebe-se claramente que, em uma sociedade capitalista, o Direito e a sua aplicação jamais irão verdadeiramente privilegiar a classe trabalhadora. O Direito jamais irá contrariar o sistema que o engendrou.

Dizendo de outra maneira: o Direito burguês é mais um instrumento de dissimulação das injustiças sociais e um obstáculo às mudanças efetivas das relações de produção e circulação da riqueza nacional.

Por vezes, tendo em vista a correlação de forças existentes em determinado momento histórico, o Estado cede em “questões periféricas” para manter estável o que socialmente é principal para usufruto dos privilégios da classe dominante.

O problema é que não há possibilidade de existir uma sociedade sem normas jurídicas (anomia), como dissemos acima. A produção de normas jurídicas é inerente à vida de relação, à vida societária.

Em sendo assim, uma acelerada evolução social (ou mesmo uma ruptura) somente será alcançada com uma revolução na “infraestrutura” das sociedades, mudando-se o modo de produção material, a forma de produção e distribuição de suas riquezas.

Engana-se quem imagina que o Direito possa ser efetivamente um instrumento para grandes transformações sociais. Ao contrário, quase sempre, ele se apresenta como um obstáculo às transformações mais agudas nas sociedades.

O poder jamais irá operar em prol de sua extinção. A classe social dominante jamais abdicará dos instrumentos que a mantém no poder político. O poder econômico somente cultua a democracia formal enquanto ela lhe garante o poder político. O poder econômico somente respeita o Estado de Direito enquanto ele lhe garante a manutenção do poder político.

Por isso, através destes instrumentos criados pela própria democracia liberal, historicamente jamais se logrou avançar para um novo modelo de sociedade, com ruptura da ordem econômica, alterando-se o modo de produção e circulação da riqueza nacional.

Vale dizer, para o poder econômico, a democracia somente é respeitada enquanto serve para a manutenção desta estrutura injusta e nunca para alterá-la. Por este motivo, os reformistas sempre foram hostilizados pelos revolucionários sociais. Seriam utópicos ou ingênuos e não entenderiam os postulados do materialismo histórico – não teriam entendido a luta de classes, que sempre ocorre nas sociedades.

Destarte, o máximo que se pode esperar do Direito é que ele crie “espaços sociais” que possibilitem a conscientização do povo trabalhador a fim de que, alterando-se, parcialmente, as relações materiais e econômicas, se possa lograr, a médio prazo, uma sociedade mais justa, fraterna e libertária.

Por ora, temos de nos satisfazer com uma espécie de “socialismo democrático”. Se o Direito não atrapalhar, já será um ganho importante !!!

Relevante esclarecer que esta visão mais realista não deve incentivar um cômodo imobilismo. O sonho de um novo modelo de sociedade e de um “novo homem” não deve ser apagado de nosso “horizonte utópico”, pois ele nos motiva a jamais deixar de lutar para concretização futura de nossos melhores valores.

Algum dia, o ser humano chegará a ser verdadeiramente humano, livre de qualquer forma de exploração e vivendo em uma sociedade plenamente justa. Seremos realmente civilizados. Acreditemos. As futuras gerações agradecerão …