O erro de prender Bolsonaro sem tocar em Temer. Por Edward Magro

Atualizado em 24 de agosto de 2025 às 9:27
Ex-presidente Michel Temer é levado preso após ser abordado pela Polícia Federal no meio de uma via em São Paulo em 2019. Foto: AFP

Graças à Polícia Federal, vivemos uma semana incomum, dessas que mereceriam registro em ata como patrimônio da vida pública. A sequência de revelações foi de tirar o fôlego de mergulhador de águas profundas: Malafaia, afinal, encontrou a rola que Boechat lhe prescrevera anos atrás; o sempre cortês Eduardo Bananinha brindou o próprio pai com um educadíssimo VTNC, gesto que a crônica familiar há de registrar como prova de afeto filial; e descobriu-se que Jair aplicou trinta milhões de reais, de modo impecavelmente legal, em CDI nos últimos dois anos. Não foi o bastante, pois a PF apurou que, além desse investimento limpíssimo, ele recebeu quarenta e quatro milhões de reais em sua conta pessoal, quase metade por PIX, enquanto Bananinha e Carluxo, mais industriosos, somaram oito milhões em ganhos próprios. O filho chocolateiro ficou à margem dessa partilha.

Foi, porém, num acesso de fúria pueril, que Bananinha protagonizou o episódio de maior densidade política. Ao ser acusado de sua imaturidade evidente, reagiu com um zap-zap que fez tremer a moldura da foto oficial no salão da família: “Você falaria isso do Temer?”

O Brasil, sempre disposto ao riso, amanheceu coberto de memes, de norte a sul, sem perceber o essencial. O esperneio infantil não foi simples reflexo de defesa, mas confissão. Como bom psicanalista de botequim, como todo brasileiro-raiz, vejo aí um ato falho, daqueles em que a alma fala antes que o dedo consiga digitar. Num átimo, Bananinha entregou que Michel Temer é o símbolo, o ícone, a inspiração do projeto golpista. O nome escapou não por descuido, mas porque estava ali, na superfície, pronto para emergir: Temer, o homem a ser seguido, o guru supremo do golpe. O verdadeiro mito.

O que salta desse lapso bananeiro é cristalino: sem o golpe de 2016 não haveria a tentativa de golpe de 2022 a 2025, sim, 2025. A tentativa não cessou; prossegue altiva, incólume, avançando como se nada houvesse acontecido. Não se trata de metáfora nem de paranoia conspiratória, mas de linha reta, sequência lógica, fato incontornável.

Basta lembrar que, em 2023, o TRF-1 arquivou o processo das supostas “pedaladas fiscais”, reconhecendo que pedalada alguma existiu. O álibi jurídico que serviu de pretexto para derrubar Dilma Rousseff esfarelou-se por completo, revelando-se encenação tosca, embora eficaz. O revólver que matou a democracia foi identificado, periciado e reconhecido como verdadeiro, mas os dedos que puxaram o gatilho seguem intactos, impunes, conspirando nas sombras do poder.

Golpe dado, Michel Temer foi o síndico perfeito da grande liquidação nacional. Em menos de dois anos, executou com eficiência implacável todo o cardápio exigido pela Faria Lima e, sobretudo, por Washington. Rasgou a legislação trabalhista, golpeou as aposentadorias, esvaziou políticas públicas vitais como o SUS e o Bolsa Família e, ainda mais, sequestrou o orçamento com o teto de gastos, mecanismo de austeridade tão cruel quanto inútil, concebido para asfixiar qualquer projeto de desenvolvimento.

Das mais profundas catacumbas do neoliberalismo entreguista, trouxe de volta Pedro Parente para completar a obra, doar a Petrobrás, entregar o pré-sal e atrelar o preço dos combustíveis brasileiros ao humor das bolsas internacionais de petróleo. Parente, que no governo FHC já havia transferido ao capital privado a parte mais rentável do setor elétrico, a distribuição, regressou com louros, repetindo o método, exibindo o mesmo desprezo pelo interesse público e o amor unilateral pelos interesses dos endinheirados.

Para os Estados Unidos, Temer entregou tudo o que estava na pauta e foi além, trabalhando ativamente para encarcerar Lula, retardar a integração Sul-Sul e destruir qualquer projeção autônoma do Brasil no continente, tratado em Washington sem disfarces como “nosso quintal”. Se ainda não o é, Temer merece ser celebrado em feriado nacional como o “Funcionário do Século dos EUA”.

Não por acaso, seus sócios políticos no exitoso golpe, os donos de partidos Gilberto Kassab, Ciro Nogueira e Valdemar Costa Neto, os operadores Eduardo Cunha e Arthur Lira e a ala fardada sempre disponível, embarcaram todos no governo Bolsonaro. Surpreendentemente, ou talvez sem qualquer surpresa, são exatamente os mesmos personagens centrais na tentativa de golpe comandada por Bolsonaro. Também não podemos deixar de fora os financiadores, principalmente o rentismo da Faria Lima e o ogronegócio; tampouco os sustentadores jurídicos Brasil afora, ancorados em instâncias inferiores altamente fascisto-militantes. Por sorte ou destino, o Supremo, que foi vacilante no golpe de 2016, tem sido atualmente fiador e garantidor da democracia.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Foto: Evaristo Sá – 16.ago.2025/AFP

Bolsonaro é um serial criminal, dono de uma ficha policial tão vasta que poderia preencher volumes encadernados. Há motivos de sobra para vê-lo atrás das grades: crimes de genocídio na pandemia, corrupção miúda e repulsiva, quarenta e quatro milhões de reais que brotaram em sua conta em apenas três anos, além de uma coleção de imóveis comprados a dinheiro vivo. Mas, alvíssaras, será preso apenas por tentativa de golpe.

Enquanto isso, os que de fato derrubaram um governo legítimo, mergulhando milhões de brasileiros na miséria e saqueando o Estado em favor de interesses estrangeiros, permanecem livres, elegantes, circulando com naturalidade por coquetéis, lamentavelmente não-molotovs, entre Brasília e Miami.

Enquanto os agentes do golpe de 2016 não forem julgados e punidos, a democracia brasileira continuará sendo um castelo de cartas à mercê do vento. Temer e seu exército de conspiradores são o verdadeiro núcleo do problema. Bolsonaro não é causa, mas consequência. Não é arquiteto, mas pedreiro de obra pronta. Sem punir 2016, não haverá paz democrática.

Prender Bolsonaro sem tocar em Temer e seus cúmplices é como condenar o ladrão de galinhas e condecorar o assaltante do Banco Central. É chamar de justiça o que não passa de encenação, deixando o crime original intacto, pronto para ser repetido.

No fim das contas, a frase de Bananinha vale mais do que qualquer relatório da Polícia Federal: “Você falaria isso do Temer?”

Sim, Eduardo. Falaremos. E esperamos ser ouvidos. Falaremos até que o país desperte e compreenda que, sem extirpar o golpe de 2016 e seus beneficiários, nenhuma eleição, nenhum Lula, nenhum Xandão, nenhuma prisão, nenhum PIX apreendido salvará a democracia.