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O erro do garoto Ahmed, algemado numa escola dos EUA, foi agir como branco. Por Marcos Sacramento

Ahmed Mohamed

 

Ahmed Mohamed, o garoto de 14 anos detido e algemado no Texas por levar à escola um relógio parecido com uma bomba, cometeu o erro de se comportar como se fosse branco, anglo-saxão e protestante. Se ele se tivesse um nome americano, fenótipo caucasiano e usasse cabelo cuia, certamente não causaria pânico por causa da engenhoca que construiu e tampouco seria algemado, detido e interrogado por várias horas.

A atitude das autoridades em relação a Mohamed, filho de um imigrante sudanês, contrasta com as medidas tomadas em relação a Dylann Roof, acusado de assassinar nove negros em uma igreja na Carolina do Sul em junho deste ano.

Por três vezes, pouco antes do atentado, Roof teve problemas com a polícia. Em fevereiro, foi abordado por um oficial depois de entrar em um loja de shopping center, vestido de preto, e indagar sobre a rotina dos funcionários. Como a polícia encontrou com ele um medicamento de uso restrito, Roof foi acusado de conduta inadequada.

Na segunda vez, Roof foi abordado quando vagava a esmo por um parque. O policiais encontraram partes de um rifle semiautomático no porta malas do carro, mas ele saiu sem nenhuma acusação.

No terceiro episódio, foi detido e acusado de conduta inadequada por voltar ao mesmo shopping onde esteve em fevereiro, infringindo a determinação de ficar um ano longe do lugar.

Nada disso, nem o histórico de uso de uso de drogas impediu que Roof comprasse legalmente uma das armas utilizadas para cometer o massacre, uma pistola calibre 45.

Fosse islâmico ou de origem árabe, Roof estaria monitorado há tempos pelas agências de combate ao terrorismo, mas como tem a cor do privilégio conseguiu executar o atentado sem maiores obstáculos.

Esta diferença de tratamento entre brancos e não-brancos foi o assunto da palestra do Ted “Como criar um filho negro na América”, do professor e escritor Clint Smith. Em certo momento do discurso, ele lembrou da bronca que recebeu do pai por brincar de polícia e ladrão com amigos brancos.

“Penso em como uma noite, quando eu tinha uns 12 anos, em uma excursão para outra cidade, meus amigos e eu compramos Super Soakers (nota: arma de água) e transformamos o estacionamento do hotel em nosso próprio campo de batalha de água. Nós nos escondíamos atrás de carros, corríamos pela escuridão que ficava entre os postes de luz, risadas altas em toda parte, pelas calçadas.

Mas depois de dez minutos, meu pai saiu, me pegou pelo braço e, com uma força incomum, me levou para o nosso quarto. Antes que eu pudesse falar, dizer o quão idiota ele me fez parecer diante dos meus amigos, ele zombou de mim por ser tão inocente. Olhou-me nos olhos, com o medo o consumindo, e disse: “Filho, eu sinto muito, mas você não pode agir como seus amigos brancos. Você não pode fingir que está atirando.

Você não pode correr por aí no escuro. Você não pode se esconder atrás de nada além dos seus dentes.” Eu sei agora o quanto ele devia estar com medo, o quão facilmente eu poderia ter caído no vazio da noite, que alguém poderia confundir aquela água com um bom motivo para “passar o rodo”. Estes são os tipos de mensagem que recebi a vida inteira, ouvindo: sempre mantenha suas mãos onde possam ser vistas, não se mexa rapidamente, tire o seu o capuz quando o sol se puser”.

Smith refere-se ao negros norte-americanos vitimados rotineiramente pela polícia, mas o conselho serve também para os islâmicos daquele país e para os garotos das periferias brasileiras, onde o simples ato de correr transforma uma criança negra em um alvo a ser abatido.

Marcos Sacramento

Marcos Sacramento, capixaba de Vitória, é jornalista. Goleiro mediano no tempo da faculdade, só piorou desde então. Orgulha-se de não saber bater pandeiro nem palmas para programas de TV ruins.

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