O Estatuto da Família não é só homofóbico — é um ataque à inteligência. Por Bruno Simões

Atualizado em 17 de outubro de 2015 às 8:04

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No dia 24 de setembro, qualquer esforço mental para acompanhar as cinco horas de votação da comissão para o Estatuto da Família corria sérios riscos de manifestar sintomas intermitentes de estonteamento, tédio e ininteligibilidade.

Os quase noventa minutos iniciais da suposta “discussão”, para apreciação final do relatório do Estatuto, exibiam um silêncio assoberbado da bancada evangélica, com ampla maioria de 21 votantes, diante das tentativas de obstrução por quatro deputados do PT, PSOL e PTN, que se opuseram a validar o conceito de família em pauta.

Segundo a letra do relatório, a “união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” é “credora de especial atenção” do Estado; outras formas de parentesco, alega-se, estão fora do relatório por serem contempladas por “proteções específicas” de outros dispositivos legais.

O que se seguiu da votação, carregado aí sim de bate-boca acalorado, não permitiu senão registrar o descalabro do ocorrido, revoltar-se contra mais uma vitória conservadora na legislação brasileira e apresentar requerimento para que o Estatuto seja votado em plenário da Câmara no dia 21 de outubro.

Para além dos conflitos crônicos de autoridade entre o poder legislativo que cria a lei e o judiciário que a faz valer no dia a dia, a aprovação do relatório não só desprezou o reconhecimento jurídico de casais homoafetivos como entidade familiar, conferido pelo STF em 2011, como também se mostrou afinada com o diapasão obsceno da criação de leis a partir de argumentos esdrúxulos, oscilando entre a interpretação de que a Constituição enuncia aquilo que a “natureza prescreve” (a natureza prescreve a família? Na minha ingenuidade, sempre pensei que as pessoas escolhessem por conta própria suas relações, enfim…), e o reconhecimento hipócrita de que todas as pessoas devem ser respeitadas, embora não se deva respeitar aquilo que elas querem para as suas vidas na “casa do povo”.

Nesse fuzuê de ideias canhestras, onde não se medem esforços para ostentar a burrice, convive-se com um quadro político que nos leva a formular resignadamente: como é duro ser subdesenvolvido!

Todo o retrocesso que temos acompanhado a olhos vistos resulta de uma ignorância cada vez mais legitimada, em grande parte socialmente apoiada e que, portanto, não é fruto somente da ação de lacaios do Senhor voltados a manipular corações e mentes de seus rebanhos humildes e crédulos. Não à toa numa pesquisa recente, a maioria dos congressistas se diz a favor da união de pessoas do mesmo sexo, ao passo que, num levantamento anterior, para 60% de entrevistados, membros da sociedade civil, família é tão-somente a relação entre homem e mulher.

Trata-se de um contexto geral indecente, em que obtusamente se alega, por exemplo, que os defensores de outras formas de união de casais fazem apologia do divórcio, entre outras estultices. (De todo modo, poderíamos completar essa linha de raciocínio, não propriamente concordando com a categoria de apologia, mas afirmando, sim, que se um casal não deseja mais permanecer junto, que cada um tente ser feliz como melhor lhe aprouver, pura e simplesmente porque nenhum de nós, muito menos o Congresso, tem nada a ver com isso)

Mesmo que nunca tenham andado em linha reta, como observou Norbert Elias em O processo civilizador, as conquistas de diversos movimentos sociais constituem uma evolução dos direitos do indivíduo, cuja dinâmica se dá numa alternância de recuos e avanços das “libertações humanas” frente às repressões que vão sendo sempre repostas.

Para o sociólogo alemão, questões que no século XVI, como num diálogo escrito por Erasmo entre uma criança e uma prostituta, podiam ser postas sobre a mesa sem nenhum tabu ou distinção e que serviam para educar os filhos, passaram, do século XIX em diante, a ser tratadas da forma mais segredada possível, graças a uma estrutura social burguesa que, por assimilar diversas formas de “vergonha e repugnância”, não se mostrou nem um pouco apta a lidar com o fato de que a figura indecorosa de uma mulher que vende seu corpo também faz parte da realidade social.

Mesmo que não contássemos na altura do campeonato com tanta marcha à ré de retrocessos políticos, todos os outros parentescos, casais de mesmo sexo ou simplesmente dos indivíduos em geral, independentemente de suas orientações sexuais, devem ser credores da proteção do Estado.

Além de não se tratar de uma agiotagem de congressistas, a adoção, a pensão, a herança, entre outros direitos, não devem ser exclusividade de um conceito que, por sua vez, pretenderia confinar a realidade atual de um modelo de família cada vez mais multifacetado.

Ainda que não tenha dado sinais de esgotamento, essa luta infame pela busca de reconhecimentos pueris (como se tudo se encerrasse no desejo imaturo de ser membro de um clube de boçais) segue salvaguardas e diretrizes de uma moralidade e de um moralismo burguês que precisam ser postos sob uma nova luz. Não parece cabível que tantas revoltas, reivindicações e esclarecimentos concretizem-se agora na pauta do direito a não ser espancado em praça pública, seja porque dois homens ou duas mulheres estão de mãos dadas, ou porque casais do mesmo sexo se mostram suficientemente bem-comportados para ser aceitos como “normais”, podendo assim usufruir dos direitos públicos, já que, conforme a fala de um deputado na votação, tais atos representam um “desrespeito à celula mater”.

É óbvio que ninguém pode ser espancado e é elementar que quem quer ter filho precisa ser responsável. De tudo o que se tem mostrado até agora o maior desrespeito é com a inteligência humana.