O estranho caso da autocontratação de Ronaldo Laranjeira para gerenciar um projeto de R$ 114 milhões

Atualizado em 19 de novembro de 2014 às 14:57
alckmin e laranjeira
Alckmin e Laranjeira

 

Há algumas pontas mal amarradas na história da contratação da Associação Paulista Para o Desenvolvimento da Medicina, SPDM, pelo governo Alckmin. De acordo com o Estadão, essa ONG receberá 114 milhões de reais, durante cinco anos, para gerenciar um hospital para craqueiros no centro da cidade.

Quem preside a organização é o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador do programa para combate ao crack da Secretária da Saúde. Esse mesmo hospital faz parte do Recomeço, projeto chefiado pelo próprio Laranjeira.

Ou seja, de certa forma, Laranjeira contratou-se a si mesmo, ou à sua organização.

O Ministério Público Estadual está enxergando aí um conflito de interesses. “Do ponto de vista ético, merece uma reflexão maior. É algo que precisaria ser mais bem pensado e investigado. É uma situação muito inusual alguém estar dos dois lados, como contratante e como contratado”, declarou o promotor da Saúde Pública Arthur Pinto Filho.

Não houve licitação e as obras da unidade estão atrasadas. O que estava prometido para fevereiro ficou para o segundo semestre e outras alas foram deixadas para o ano que vem. “A entidade não tem fim lucrativo, o professor [Laranjeira] não ganha no estado e não ganha nada por ser presidente da SPDM, então, em princípio, não há [conflito de interesse], mas o procurador-geral do estado vai avaliar”, afirmou Alckmin.

Como me falou um amigo jornalista: “Um único homem é o mentor, elabora, aplica e gerencia financeiramente a política antidrogas do governo estadual. No mínimo, deveria haver um conselho contemplando diferentes opiniões”.

Laranjeira é um nome respeitado nesse terreno, mas, sobretudo, controvertido. Ficou relativamente famoso depois de uma entrevista no “Roda Viva” em que, num intervalo, desancou uma das entrevistadoras. Ilona Szabo, especialista em segurança pública, ousou criticar a forma como ele lidava com os dados que apresentava. “Cresça e apareça, menina. Quem é você? Eu tenho 30 anos de experiência nisso”.

É um arauto da Guerra Contra as Drogas. Basicamente, acredita que a única saída possível para a dependência é a abstinência, modelo aplicado, por exemplo, pelo AA. Recusa a chamada “redução de danos”, em que o usuário consome o mínimo para mantê-lo funcional, sem completo prejuízo de sua saúde. É contra a descriminação. Citou o papa para reforçar seu ponto num artigo para a Folha.

E, para Laranjeira, internar de forma compulsória moradores de rua dependentes de crack é uma obrigação e um “ato de solidariedade”, como disse à BBC. Ele prega isso de maneira peremptória. Ou essa é a visão oficial e a que lhe rende dividendos políticos. Em maio de 2012, assinou o editorial da revista inglesa Addiction, a mais importante do mundo na área, juntamente com outros pesquisadores.

O artigo tinha como título o seguinte: “A detenção compulsória, a desintoxicação e o trabalho forçados não são eticamente aceitáveis ou efetivos para tratar o vício”. Mais: “Centros de detenção em países em desenvolvimento não contribuem para reduzir, e sim amplificar os problemas na saúde pública. (…) Os poucos países desenvolvidos que ainda prendem dependentes compulsoriamente — como Rússia e Suécia — o fazem na ausência de avaliações rigorosas da eficácia dessa abordagem”.

Há uma história mal contada e os 30 anos de experiência de Laranjeira serão mais úteis do que nunca para explicá-la.