O “estupro culposo” no Brasil de Bolsonaro: quando se julga sem intenção de condenar. Por Nathalí

Atualizado em 3 de novembro de 2020 às 16:36

“Estupro culposo”, quando não há intenção de estuprar: essa é a nova aberração que o judiciário brasileiro precisou inventar no velho malabarismo para inocentar homens brancos, ricos e culpados.

O caso Mariana Ferrer vem gerando revolta desde que foi divulgado. O empresário André de Camargo Aranha drogou e estuprou a promotora de eventos de 23 anos em uma festa em 2018, no empreendimento do empresário em que a vítima trabalhava.

Mariana, que era virgem (e daí se não fosse?), denunciou o estuprador e provou na justiça que a relação sexual sem consentimento (estupro) de fato acontecera.

Ainda assim, o juiz de primeira instância de Florianópolis encontrou um jeito de absolver o criminoso em setembro de 2020, o que inflamou o discurso de mulheres e ativistas em defesa de Mari Ferrer, levando a tag #JustiçaPorMariFerrer aos trending topics do Twitter.

A repercussão do caso na internet, é claro, não agradou em nada o empresário estuprador, e na mesma semana a conta de Mari no Instagram foi misteriosamente (ou não) tirada do ar.

Além de estuprada, silenciada e humilhada.

Na peça acusatória, o Ministério Público considerava até então André Aranha culpado por estupro de vulnerável – o tipo penal adequado para os estupros nos quais as vítimas não têm condições de consentir, como por exemplo quando são civilmente incapazes ou foram drogadas por seus estupradores, como no caso de Mari.

Não se sabe o que aconteceu neste meio tempo (no fundo, sabemos, sim), mas o fato é que entre setembro e novembro de 2020, André Aranha passou de acusado (com provas e com convicção) por estupro de vulnerável a absolvido por estupro culposo, quando não há intenção de estuprar (?).

Esse tipo penal nunca existiu no ordenamento jurídico brasileiro, e, como ninguém pode ser condenado por um crime que não existe, o empresário foi absolvido – leia de novo, também não faz sentido pra mim.

Há crimes que simplesmente não admitem modalidade culposa ou tentativa, porque a própria lógica não lhes permite. Por exemplo: não existe “tentativa” de ameaça, porque ameaçar, por si só, exige uma intenção. Quem ameaça, não pode fazê-lo sem querer.

Deste modo, sempre que um crime de ameaça é julgado, ele é julgado na modalidade dolosa e como crime consumado – por se tratar de um tipo penal que não admite culpa ou tentativa. No fundo, é muito simples.

Do mesmo modo, não existe o crime de estupro na modalidade “culposa” no ordenamento jurídico brasileiro porque os legisladores entendem (perdão por afirmar o óbvio, mas como podem ver, se faz necessário) que ninguém estupra sem a intenção de estuprar. Ou seja: todo estupro é doloso.

Mas, no Brasil, se você for rico, pode ter um crime inventado só pra você. Inventam o crime e te absolvem porque ninguém pode pagar por um crime inventado. Se você tiver muito dinheiro pra gastar, você pode também pagar o melhor advogado do seu estado para expor e humilhar a vítima que você estuprou, como fez Cláudio Gastão da Rosa Filho, contratado (ou comprado?) por André Aranha pra fazer o trabalho sujo.

As imagens do julgamento de André, divulgadas hoje pelo Intercept Brasil, são asquerosas, para dizer o mínimo. Um show de desrespeito, misoginia e ilegalidade – não que a maioria dos julgamentos de estupradores não se dê da mesma forma, é claro.

O advogado mostra no tribunal fotos sensuais de Mariana (definidas por ele como “fotos em posições ginecológicas”, mas que naturalmente não chegam nem perto disso – e ainda que chegassem!), e não é questionado em nenhum momento, nem pelo juiz, nem pelo MP, sobre a relação entre essas fotos e o crime que está sendo julgado.

“Teu showzinho tu vai lá no teu Instagram. Fala a verdade, tu trabalhavas no café, estava com o aluguel atrasado, é teu ganha-pão manipular os outros!”, afirma o advogado, sem ser interrompido ou repreendido.

Perdoem: as cenas do julgamento, embora ilegais e inadmissíveis, não me chocam. Não a mim, que já pude presenciar outros julgamentos misóginos, tanto de crimes sexuais, quanto de crimes de violência de gênero.

Quando a vítima é uma mulher, tudo converge para que ela seja sistêmicamente e repetidamente vitimada, de novo e de novo e de novo. É este o “velho normal” de se ser mulher no Brasil.

Na verdade, mostrar no tribunal fotos sensuais de vítimas de estupro como forma de desabonar sua conduta e enfraquecer sua narrativa é uma prática comum no Brasil, adotada sem o menor constrangimento pelos mais pilantras advogados do país.

É uma tática que costuma funcionar muito bem em um país que considera imoral que mulheres exibam seus corpos, mas completamente aceitável que homens droguem essas mulheres e as estuprem.

Eu mesma já vi um advogado fazer isso em um processo, e me dizer, com todas as letras, que isso era necessário para desfazer diante do juiz a imagem de vítima construída pela… vítima. Eu era sua estagiária, e é claro que eu pedi demissão.

Não é a toa que o Brasil é o pior país da América Latina para se nascer menina. Por aqui, sempre encontram um jeito de nos tornar culpadas, mesmo quando somos vítimas. Sempre há um jeito de nos violentar de novo depois que somos violentadas – especialmente se o nosso algoz for um homem branco e rico, mas, na verdade, basta ser homem.

Condenar as vítimas, e não os estupradores, é o que mais faz o poder judiciário brasileiro. Mas admitir que um advogado de defesa deboche em juízo de uma vítima de estupro, a exponha e humilhe, é demais até pra nós.

Inventar um crime, contra todo um ordenamento e contrariando a própria Constituição Federal, apenas para absolver um homem rico que provavelmente desembolsou muito dinheiro pra isso, ultrapassa todos os limites do absurdo.

É vergonhoso, escrachado, violento com todas as mulheres brasileiras, com todos os brasileiros que têm ainda algum brio e apreço pela justiça. É a prova cabal de que não há lei para os donos do Brasil: a lei que impera aqui é o dinheiro.

Não existe estupro sem a intenção de estuprar. Mas – nos prova diariamente o Brasil – existe julgamento sem a intenção de condenar.