O evangelho segundo Barbie e o Power Ranger guerrilheiro. Por Lenio Streck

Atualizado em 3 de agosto de 2023 às 10:40
Cena do filme Barbie. (Foto: Reprodução)

Por Lenio Luiz Streck

Dizia T.S. Eliot que, numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo. Por isso escrevo este texto. Parece que estou fugindo… com tantos fugitivos em volta. Arrisco. Há risco.

Embora Antonio Prata tenha feito uma brincadeira tipo backlash do filme Barbie na Folha de domingo, um dia antes fiz comentários em grupos de WhatsApp sobre o tema, bem na mesma linha. Ambos, Prata e eu, pensamos em algo como “o arrependimento de vilões” ou a ressignificação de arquétipos.

Ouso, assim, discordar respeitosamente dos que tecem loas ao filme. E vou brincar um pouco com tudo isso. Uma ludocrítica.

Então.

Para além da coluna de Prata, pensei em um filme bem cool com os Powers Rangers sendo guerrilheiros socialistas, com a Mermaid com traje de Che (nota: sei que Mermaid era dos Changeman, mas esse é o busílis do filme — afinal, change quer dizer troca…!).

Ou o político Paulo Maluf, em longa-metragem, agora filiado ao PSOL, defendendo políticas identitárias. A película mostra a infância de Maluf, rico e já vencendo eleições no grêmio estudantil em resultados duvidosos, e, ele adulto, virando revolucionário como prefeito de Itapecerica da Serra, transformada em meca revolucionária. Põe catarse nisso. A parte em que os personagens descobrem que têm frieiras nos pés dá Oscar.

Outra opção de roteiro é um filme sobre a vida e obra de Gustavo Lima, arrependido dos shows que fez para prefeituras (e dos seus apoios políticos) e das músicas cantadas em tom anasalado, aparecendo em noir, cantando bossa nova de cidade em cidade. O topete altíssimo dá lugar a um chapéu fedora. Ao final, dirige um táxi no aeroporto de Cumbica. O filme é repleto de flashbacks. Na verdade, o roteiro todo se passa em um táxi — essa parte é copiada por um ChatGPT do programa do Gugu.

cachê de show de Gustavo Lima em cidade pequena é investigado
Cantor sertanejo Gustavo Lima
Foto: Reprodução

Na sequência do filme Barbie, coqueluche da crítica (já se fala em vários Oscars) e da esquerda mundial (e brasileira), ela, a Barbie, vem para o Brasil e é recebida em palácios governamentais. O Fantástico faz um especial de duas horas entrevistando médicos e designers, sobre como ela tinha aquela cintura — tinha mesmo dois rins?

Essa sequência do filme apresenta Barbie vestida de Carmen Miranda, rodeada de personagens vestidos de Zé Carioca. O lema é “Eis uma boneca que as meninas pobres não podiam comprar e agora chegou a hora de enganar de novo essa malta — fazendo uma catarse”. Um dos patrocínios é das lojas do Burger King (cujos sanduíches de novo os pobres não podem pagar), com todos os prédios pintados lindamente de rosa. Meigo, não? E revolucionário. Barbie aparece com a mão esquerda erguida, como a estátua das Lojas Havan — que também estão pintados de rosa!

Já o terceiro filme da franquia Barbie será em metaverso, cujo roteiro mostra-a substituída por inteligência artificial. O filme será feito por cinco pessoas. O resto será composto por robôs. Tudo recorde de bilheteria. Com superlucro.

O que fica é: como é possível que uma espécie de “mea culpa” sobre uma boneca de plástico, com uma linguagem que sequer é cifrada — e por isso “todo mundo entende” — faça tanto sucesso? Sintomático. Perdemos a capacidade de entender as mensagens sem que elas sejam soletradas.

Já estão surgindo comparações de Barbie com o evangelho. Barbie, 1, 15. Ou Barbie, cap 1, verso 71. “Naqueles dias ela andava com o carro rosa… e, chegando à loja, deu-se conta dos erros e dos males que havia causado com o seu modelito de moça branca, rica, e perfeita”. Agora o filme traz a expiação. Com os pés chatos. Não só os pés.

Na cerimônia do Oscar de 2024, uma comitiva de brasileiros e brasileiras acampará em Hollywood. Os repórteres da TV estarão vestidos de Barbie. O avião que leva a comitiva é cor de rosa. Como a Barbie. A tripulação estará vestida de Barbie. A final da Champions será em homenagem à Barbie — a ressignificação.

O único filme crítico disso tudo — que certamente será esculhambado pela crítica — poderia ser feito por algum neto ou bisneto do Milan Kundera, que foi quem melhor trabalhou o conceito de kitsch. O título do filme poderia ser “Barbie — o Kitsch: de como se perfuma o lixo”.

De todo modo, a maioria das críticas é “encantada com o filme”. Greta Gerwing, a diretora, conseguiu “colocar no chinelo” Kubrick, Spielberg, Hitchcock, Truffaut e fez o que outros gênios do cinema jamais conseguiram. Como disse um crítico, ironicamente, “Barbie está para 2023 como O Poderoso Chefão esteve para 1972”. Bingo.

Mas folgo em saber que não estou na contramão sozinho. Sarah Vine, do Daily Mail, disse: “É um filme profundamente anti-homens, uma extensão de todo aquele feminismo do TikTok que pinta qualquer forma de masculinidade — exceto a mais inócua — como tóxica e predatória…”. No filme (e isso é facilmente perceptível), “todo personagem masculino é um idiota, um fanático ou um perdedor triste e patético. Se os papéis fossem invertidos e um diretor fizesse um filme sobre como todas as mulheres são bruxas histéricas, neuróticas e interesseiras, seria denunciado — com razão — como profundamente ofensivo e sexista”.

E Sarah concluiu: “O filme é desigual, desconexo, o enredo não faz sentido real — e a mão morta da América corporativa pesa muito sobre ele”. Nada tenho a acrescentar, a não ser que quero meu ingresso de volta.

Outra crítica que dá no “rim” do filme é feita por Fabrício Nejar já no título “Barbie é Pinochio”, de sua coluna na Zero Hora: “Existe, entretanto, uma perigosa adulteração da realeza da Barbie, como se ela nunca tivesse sido alienante e consumista, como se nunca tivesse padronizado um ideal de beleza irreal, com as medidas anoréxicas de um corpo impossível de modelo, de cintura fina e pernas longas”.

Sigo. Na contramão. Se eu sou chato, ou se meu estatuto não me concede lugar de fala, sugiro o que disse a insuspeita Nancy Fraser à BBC Brasil. A filósofa foi no ponto sobre o neoliberalismo progressista e identitarista. Progressismo da barbielândia, digo eu.

Em alguns anos, alguém no Brasil, imitando Greta, poderá fazer um filme sobre o 8 de janeiro, em que os personagens falam de como era o mundo da bolha e agora (no filme) falam das agruras do mundo da vida. Com pés chatos e cintura nem tão fina. Arrependidos. Como Barbie? Ah: o filme terá muitas ironias e “sacadas” tipo stand up. E a crítica se regozijará.

MacIntyre, em seu After Virtue, tinha razão: o Know Nothing (o Partido do Saber Nenhum), baseado no emotivismo, chegou ao poder. No mundo.

Essa é a distopia que daria um grande filme.

Originalmente publicado em ConJur

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