O filme sobre a guerrilha do Araguaia expõe a perversidade do Exército, que não poupou nem os soldados. Por Eduardo Reina

Atualizado em 19 de março de 2018 às 7:40

A guerrilha do Araguaia foi um laboratório de experiências humanas mais perversas que existiu. Foi puro terror. Terror de Estado, baseado em uma doutrina de segurança nacional que tinha como objetivo destruir, exterminar através de técnicas de guerra algumas dezenas de sonhadores militantes do PCdoB que combatiam o regime de exceção implantado pelos militares em 1964.

O filme “Soldados do Araguaia”, que estreia no dia 22 de março nos cinemas em São Paulo, conta uma faceta dessa perversidade. O diretor do filme, Belisário Franca, revela que ficou impressionado com a força do Exército em manter silêncio por tantos anos sobre a violência contra os cidadãos, militantes políticos, habitantes da região e próprios soldados. “Essas histórias estavam escondidas”, diz.

“Soldados do Araguaia” é um documentário que se propõe a dar voz às memórias e traumas de recrutas e militares de baixa patente do Exército que combateram na sangrenta e nebulosa Guerrilha do Araguaia.

Esses militares foram marginalizados em todos os sentidos. Pela historiografia oficial, pelo próprio Exército e pela comunidade onde habitam. Agora, esses homens vítimas da guerra escondida, tiveram coragem de denunciar o que sofreram. Conseguiram ultrapassar a barreira psicológica da timidez e do medo.

Com a cara limpa, sob forte impacto emocional, soldados, cabos e sargentos contam o que foram obrigados a enfrentar, sem nunca terem tido um treinamento adequado. Aqueles que não se mataram ou se perderam na vida convivem diariamente com fantasmas que os atormentam sem parar. Outros sofrem com o alcoolismo, o desejo de suicídio e sofrem estresse pós-traumático devido ao abuso e sadismo que sofreram e testemunharam.

Esses ex-integrantes do Exército que foram obrigados a atuar contra os militantes do PCdoB e contra o seu próprio povo durante a repressão à guerrilha estavam totalmente esquecidos. Suas histórias ficaram invisibilizadas com o tempo.

“Tive contato com essas histórias que foram levantadas pelo jornalista Ismael Machado. Ele publicou parte dos casos num diário paraense e achei que seria necessário contar tudo”, explica Franca.

A maior dificuldade durante a produção da película, diz o diretor, foi ganhar a confiança dos soldados para que contassem tudo o que sabem. “Não estava interessado só numa entrevista. Havia o testemunho de memória submergida. Então foi preciso ter a confiança de todos para expor essas memórias. Eles trouxeram as dores que convivem com eles diariamente. É um fantasma que permanece cotidianamente na cabeça dessas pessoas”, relata Franca.

O filme mostra fielmente essas memórias traumáticas, com delicadeza e respeito. Um importante marco para a história da ditadura no Brasil.

No ano passado, o “Soldados do Araguaia” foi exibido especialmente num cinema na cidade de Marabá, no sul do Pará, região do Araguaia. Estiveram presentes alguns protagonistas que já haviam gravado depoimento e outros que haviam se recusado a falar. “Mas aqueles que não quiseram falar num primeiro momento acabaram depondo em pleno cinema, após a exibição do filme, de tão emocionados que ficaram”.

Quando serviram o Exército no início da década de 1970, contam os ex-soldados, ingressar no serviço militar era algo digno, que todos queriam. Muitos entravam para poder receber o certificado de reservista. Mas quando entraram no quartel foram surpreendidos com tamanha brutalidade.

Da região de Marabá, por exemplo, eram todos filhos de camponeses ou de moradores da pacata cidade. Dos cerca de 60 que se alistaram em 1973, todos com 18 anos de idade, só dois tinham cursado o ginásio (atual ensino fundamental II). O restante era pessoal da roça, da lavoura, que cortava castanha no meio do mato. Todos muito simples, sem vivência social e isolados do mundo.

Com 15 dias dentro do quartel e sem saber lidar com armas de fogo foram obrigados a participar de grupos de combate para caçar os guerrilheiros no meio da floresta Amazônica. “Não me orgulho disso não”, repete o soldado Josean.

“A gente acordava de madrugada com eles jogando bomba debaixo das barracas da gente”, diz outro soldado. Mas respirar gás lacrimogênio era o menor suplício a que tiveram que passar.

Eram amarrados, nus, em estacas e cobertos com água com açúcar. Formigas, marimbondos e outros bichos os atacavam impiedosamente. Foram obrigados a beber sangue de boi coagulado depois de permanecerem dois dias sem alimentação.

Para suportar os treinamentos e não ter dó do que iriam enfrentar, os próprios soldados passavam por sessões de tortura no quartel. Eram colocados no pau de arara. O soldado Fonseca relata que perdeu um testículo de tanto apanhar no pau de arara, que era chamado pelos militares de “pau do capitão”. Fonseca chora ao lembrar dessa tortura a que foi submetido e que ficou silenciado por mais de 40 anos.

Sem preparo físico ou emocional foram submetidos a muita violência. Depois acabaram descartados, sem direitos ou possibilidade de tratamento psicológico para o que sofreram em campo dentro da selva. Tampouco tiveram perspectivas de receber alguma reparação pelos danos sofridos.

Foram obrigados a combater um inimigo que desconheciam. Aliás, sabiam quem eram os chamados guerrilheiros. E por eles tinham algum respeito, pois a população local recebia ajuda dos militantes em todos os sentidos. Ajuda essa que o poder público não dava.

Finda a guerra, os soldados do Araguaia foram abandonados à própria sorte. Ficaram desajustados com a sociedade em que habitam. “Essa guerra, para a gente, era isso. Ou matar ou morrer. Nos colocaram numa situação de risco. Eles queriam resolve o problema lá”, descreve o soldado Ribamar.

Soldado Fonseca narra que não suportou ver os moradores da região serem torturados pelos militares. “Pegavam uma agulha grande, usada para costurar saco de castanha. Era a chamada agulha de fada. Enfiavam na unha do cara e saia aqui atrás. Doía por dentro ver aquilo”. Também foram obrigados a queimar as casas, paióis e qualquer roça que pudesse gerar alimentos para a população e para os guerrilheiros.

Os militares não respeitavam nem os familiares dos seus soldados. “Deram coronhada na barriga da minha mãe, que estava gestante. Ela morreu. Culpado disso foi essa bendita guerrilha do Araguaia”, desabafa o soldado Fonseca.

Em 1975, quando todos os focos de resistências dos militantes políticos no Araguaia haviam sido dizimados, o Exército dispensou os soldados. “Simplesmente colocaram a gente em forma e disseram que acabou. Devolveram a gente para nossa família sem direito a nada. Quando voltei, meus amigos de fora era tudo inimigo”.

“Tenho medo até hoje de andar na rua. Não se sabe a reação das pessoas”, diz o soldado Goes.

“Tenho pesadelos horríveis todo dia. Acordo sufocado. Bati na minha mulher, dormindo. Estava sonhando que brigava com o Osvaldão (guerrilheiro líder no Araguaia)”, revela Goes.

E a violência do Estado assumia graus tão refinados de crueldade que um soldado contou ter sido obrigado a presenciar a tortura do próprio pai. E que após esse episódio nunca mais foi o mesmo homem.

Helicóptero usado pelo Exército no Araguaia

O filme mostra que a violência da ditadura militar no Araguaia era generalizada. Atingia guerrilheiros, camponeses, índios, mulheres, idosos, crianças. E também não poupou seus próprios braços armados.

“Esses senhores podem ser contestados, mas isso não quebra o objetivo primordial do filme, que é dar escuta a seus traumas. Queremos provocar a reflexão sobre como nosso povo tem a subjetividade ameaçada, a identidade aniquilada em prol de agendas escusas. O filme pretende convocar a sociedade a refletir sobre o perigo a que todos nós estamos submetidos quando memórias coletivas tão relevantes para nossa construção como nação são silenciadas por décadas. Silenciamento esse que é fruto da naturalização da violência como escolha da sociedade brasileira, endossada pela impunidade que nos atravessa desde sempre” reflete Belisário Franca.

OPERAÇÃO ANJO DA GUARDA

Há enorme dificuldade para se obter informações que resgatem a história dos envolvidos na guerrilha do Araguaia junto a população local. Passados 45 anos do movimento desenvolvido pelo PCdoB e contra o regime de exceção que vigorava no Brasil, ainda persiste a atuação de agentes militares na região e, principalmente, junto à população. Há intimidação sobre as pessoas que têm algum tipo de informação que possam esclarecer fatos sobre a guerrilha.

“Fomos vigiados o tempo todo. Mesmo depois do fim da guerrilha do Araguaia e dos outros levantes. Esse processo de vigiar a gente foi ficando, ficando. Sempre com agentes de olho em tudo. Aconteceu pelo menos até o fim do governo de Fernando Collor de Mello (1992). Mas pode ter prosseguido”, explica Luiza Canuto. Ela é filha de João Canuto de Oliveira, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia. O sindicalista foi assassinado em dezembro de 1985.

A lei do silêncio impera no Araguaia. Filhos de lavradores têm medo de contar o que sabem. O maior temor deles é se encontrar com o coronel Sebastião Curió, que atuou na repressão aos militantes políticos na região na década de 1970.

Curió disse uma vez que o objetivo é manter o máximo de segredo possível. Ele disse a jornalista certa vez que uma parte das Forças Armadas estava com ele, em silêncio. Afirmou com todas as letras que tem um pacto com algumas pessoas para matar quem contar alguma coisa. E aceita ser morto de ele próprio contar alguma coisa sobre a repressão das Forças Armadas no Araguaia.

Pelo menos duas pessoas já perderam a vida depois de contar versões sobre a repressão à guerrilha. Em 2011, Raimundo Clarindo do Nascimento, o Cacaúba, foi assassinado em Serra Pelada, no Pará, distrito da cidade de Curionópolis; município do qual Curió já foi prefeito.

Cacaúba revelou algozes de vários guerrilheiros e codinomes de agentes da repressão. Acabou assassinado. Passados sete anos, a polícia não descobriu quem é o autor do crime. Ele foi um mateiro que trabalhou para o Exército, ajudando na captura de militantes.

Valdim Pereira de Souza, ex-militar e motorista de Curió à época, disse em depoimento ao Ministério Público que participou da retirada de corpos e ossadas de guerrilheiros e camponeses mortos em várias localidades da região. Por causa dessas denúncias, Souza foi ameaçado, assim como vários moradores das cidades da região do Araguaia onde se desenvolveu a repressão à guerrilha. O ex-militar recebeu telefonemas com ameaças, dizendo para calar a boca e não se meter em encrenca.

Outro militar que participou da caça aos militantes políticos, o tenente José Vargas Jimenez, também pagou com a própria vida a “ousadia” de contar parte da história da guerrilha do Araguaia em que foi protagonista. Autor de dois livros com inúmeras denúncias – Bacaba e Bacaba II – Jimenez, que atuou sob o codinome de Chico Dólar, foi encontrado morto com dois tiros no peito em setembro de 2017 na sala de sua residência, em Campo Grande (MS).

O Exército continuou a exercer forte pressão junto aos moradores locais no sul do Pará. Essa ação de repressão foi denominada “Operação Anjos da Guarda”, para monitoramento aos ex-colaboradores do Exército no Araguaia. Na cidade de Marabá era mantido um escritório que se passava como centro de elaboração e distribuição de notícias. Seria uma falsa agência de notícias.

Dentre os vários documentos apreendidos nesse local há um que revelou os principais alvos do Exército na Operação Anjo da Guarda: “Apoio junto ao CIE (Centro de Inteligência do Exército) referente à aprovação das operações Anjo da Guarda (desmobilização dos ex-guias do Araguaia), Castanheira (crime organizado e madeireiras) e Gaviões (ONGs e índios)”.

Essa ação de intimidação desenvolvida pelos agentes militares foi descoberta pelo Ministério Público Federal no início da década de 2000. Tal constatação se transformou numa ação civil pública assinada pelo promotor Marlon Weichert, encaminhada ao juiz federal da Subseção Judiciária de Marabá (PA) em 8 de agosto de 2001.

Essa fiscalização de intimidação sobre os moradores das cidades localizadas na região onde se desenvolveu a guerrilha no Araguaia já era uma constatação feita por pesquisadores e por familiares dos desaparecidos desde os anos 1990, quando começaram a ser realizadas expedições nessas localidades. Foram expedições realizadas pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão de Mortos e Desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.

Depois das movimentações, das ações civis abertas pelos Procuradores da República e solicitações junto aos órgãos federais, essas ações de intimidação diminuíram ou ficaram mais sofisticadas, sem denotação de repressão e contrainformação. Pelo menos aparentemente.

Um dos objetivos do Exército em manter a “mão pesada” sobre os moradores locais é dar continuidade ao caráter secreto com que se desenvolveram as ações de repressão à guerrilha do Araguaia e o silêncio dos vários personagens envolvidos e sobreviventes.

O sigilo com que o Exército protegeu suas operações no Araguaia tinha o propósito de negar aos adversários do regime “o reconhecimento de que efetivos das forças armadas estavam sendo empregados num problema de defesa interna dessa natureza”.