O fim de uma era em Cuba

Atualizado em 19 de abril de 2018 às 21:47

Publicado originalmente na Carta Capital.

DA DEUTSCHE-WELLE

Imagem de arquivo mostra Fidel (e.) e Raúl Castro em 2004. Foto: A. Ernesto/picture alliance

Não existe outra revolução latino-americana que tenha estremecido com mais força a região que a cubana. Nenhuma figura que tenha despertado tantas paixões como Fidel Castro, que passou de libertador de Cuba da ditadura de Batista a instaurador de um regime ditatorial, preservado pelo seu irmão Raúl.

A saída de Raúl da presidência nesta semana – ainda que não deixe a liderança do Partido Comunista – implica um encerramento, relativamente simbólico, de um capítulo em que muitas linhas cruciais se escreveram na arena internacional.

“Podemos dizer depois de quase 60 anos que a Revolução Cubana é uma revolução única na América, porque as outras, por exemplo a que aconteceu no México ou em outros lugares, não foram tão duradouras. Além disso, não modificaram tão fundamentalmente as estruturas. A Revolução Cubana o fez, acabou com o conceito da propriedade privada”, diz o diplomata Bernd Wulffen, embaixador alemão em Cuba entre 2001 e 2005.

O barril de pólvora da Guerra Fria

Quando entrou vitorioso em Havana, em janeiro de 1959, Fidel Castro ainda não encarnava o Davi comunista que desafiava o Golias “imperialista”. As tensões com os Estados Unidos começaram já nos anos de 59 e 60, com as expropriações que afetaram os interesses americanos. Mas foi a fracassada invasão da Baía dos Porcos que acabou por selar a aliança cubana com a União Soviética.

“Por um lado, Fidel Castro disse claramente, por ocasião do enterro dos soldados mortos na Baía dos Porcos: ‘Esta é uma revolução socialista’… Por outro lado, se deram conta de que o governo dos Estados Unidos constituía uma espécie de ameaça e necessitava de proteção. E que proteção podiam ter? Somente a da outra superpotência”, comenta Wulffen.

Em pouco tempo, Cuba chegou a se converter em protagonista do episódio que esteve mais próximo de descongelar a Guerra Fria para desencadear uma guerra atômica, em 1962: a crise dos mísseis.

Washington e Moscou conseguiram evitar a catástrofe, ignorando Havana, mas o governo de Fidel Castro não se conformou com o papel de coadjuvante no cenário internacional. Ao contrário, apostou em exportar a revolução.

“Eu diria que [a revolução] teve uma grande repercussão em países do Terceiro Mundo. Pensemos, por exemplo, em Angola, na Etiópia, onde Cuba interveio com tropas, enviou milhares de soldados a uma distância de mais de dez mil quilômetros; a logística que Cuba desenvolveu foi incrível”, comenta o diplomata alemão, autor dos livros Eiszeit in den Tropen (A era do gelo nos trópicos, em tradução livre) e Kuba im Umbruch: von Fidel zu Raúl Castro (A reviravolta em Cuba: de Fidel a Raúl Castro, em tradução livre).

O colapso soviético

Anos mais tarde, garantir a sobrevivência do próprio regime passou a ser a primeira prioridade, quando o colapso da União Soviética deixou o país caribenho à beira do abismo.

“Cuba perdeu 60% do seu comércio exterior e 40% do seu PIB”, afirma Wulffen. Mas Fidel Castro não estava disposto a retroceder: “Não mudo um milímetro”, foi uma frase que ficou gravada na memória do ex-embaixador alemão. “Fidel sempre pensava que sua revolução se converteria numa social-democracia, e não queria isso. Raúl estava mais inclinado a mudar certas coisas e, finalmente, levou isso a cabo a partir de 2008. Mas não foram coisas de muita envergadura. Foram pequenas mudanças.”

Apesar de a ideia da propagação da revolução armada também a outras regiões da América Latina ter desaparecido após a morte de Che Guevara, não ocorreu o mesmo com a dimensão internacional do projeto cubano.

“Cuba influenciou e continua influenciando outros países com sua educação, com seus serviços médicos. Enviou muitos médicos ao Terceiro Mundo. Isso é louvável. Mas, ao mesmo tempo, sempre também há o aspecto da propaganda, de querer mostrar Cuba como modelo aos países em desenvolvimento”, avalia Wulffen.

O componente ideológico não mudou com a transferência de poder de Fidel a Raúl Castro. Um exemplo é o apoio ao chavismo e à Aliança Bolivariana, união idealizada por Hugo Chávez para fomentar a ajuda mútua entre países da América Latina e do Caribe. “Mas são casos de fracassos, sobretudo a Venezuela”, aponta o escritor.

Estados Unidos, país-chave

Mesmo assim, a perda virtual do apoio econômico da Venezuela, imersa em sua própria crise, não encontra Cuba com o mesmo grau de dependência com que surpreendeu a ilha em seu dia da hecatombe soviética.

Com Raúl Castro no comando, Havana conseguiu se posicionar de outra forma no mundo e no continente, a ponto de ter sido anfitriã dos diálogos de paz colombianos que levaram as Farc a entregar suas armas.

Com Raúl, Cuba também viveu o momento que passará à história como o grande marco de seu governo: o degelo com os Estados Unidos, conduzido por um presidente Barack Obama convencido de que a política de isolamento e sanções aplicada até então não tinha tido resultado efetivo – nem para derrubar o regime, nem para por fim às violações de direitos humanos e introduzir uma abertura à democracia.

“Lamentavelmente, o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump não segue essa política. Ao contrário, recai no que havia antes”, sinaliza Wulffen. E isso, na sua opinião, será contraproducente para aqueles que esperam mudanças estruturais em Havana. “Acho que vai ser muito difícil para o sucessor de Raúl mudar a política, porque os Estados Unidos não lhe deixam margem para ação”, afirma o embaixador, convencido de que o que acontecer no futuro dependerá muito da situação internacional: “O novo conflito leste-oeste, entre Estados Unidos e Rússia, não é um clima propício para mudanças em Cuba”.