POR TIAGO BARBOSA
A França faz história no mundial da Rússia não apenas pelo balé futebolístico executado por Mbappé, Griezmann e esquadrão regido por Didier Deschamps.
A seleção campeã também impacta pela formação diversa do elenco: dos 23 convocados, 19 são naturalizados ou descendem de imigrantes.
A composição heterogênea, no entanto, extrapola o mero debate esportivo sobre o limite de atletas “estrangeiros” permitidos por time.
Na França, a multinacionalidade é termômetro da forma como o país lida com a própria identidade.
Disponibilizado na Netflix, “Les Bleus – Uma Outra História da França” faz uma contribuição valiosa para entender como o futebol e o extracampo se conectam.
O documentário analisa a influência da ebulição social e política sobre a seleção e vice-versa a partir de momentos-chave do calendário esportivo, eleitoral e de acontecimentos históricos.
O recorte é o período 1996-2016 e compreende a primeira conquista de Copa do Mundo (em 1998), a ascensão e a queda dos campeões no rastro da popularidade de Zinedine Zidane e, sobretudo, a travessia nada harmônica pela questão da identidade nacional – tensionada tanto pela dificuldade de acolher franceses de origem estrangeira quanto pela xenofobia de políticos da extrema-direita.
O filme costura depoimentos de jogadores, atores (entre eles, Omar Sy, de “Intocáveis”), escritores e políticos de expressão (como o ex-presidente François Hollande) para mostrar como o desempenho esportivo reflete e influencia a percepção sobre integração social.
A gangorra é constante. E o imaginário de unidade flutua ao sabor de sucessos e fracassos dentro ou fora do campo.
Na vitória, vangloria-se a miscigenação “negro-branco-árabe” pontuada pelo título de 98 e protagonizada pelo craque de origem argelina Zidane – cuja dedicação era colocada à prova, antes, porque o jogador se recusava a cantar a Marselhesa.
Na derrota, evoca-se a falta de patriotismo dos “falsos franceses”, atribuído à presença de “estrangeiros” no time e se dissolve o conceito das três raças, já esgarçado pela discriminação e pela exclusão dos não-brancos confinados às periferias.
A percepção em torno da seleção é acompanhada pelo debate público sobre a questão migratória, o avanço do extremismo, a marginalização da população de origem árabe e africana, as políticas de enfrentamento ao terrorismo.
Impressiona a consciência social dos jogadores (na ativa ou aposentados) sobre temas de interesse nacional – postura crítica ausente de boa parte dos atletas brasileiros.
À declaração radical do então ministro (e futuro presidente) Nicolas Sarkozy – “vamos nos livrar desses bandidos”, diz ele, após onda de protestos nas ruas -, o jogador Lilian Thuram, negro, toma as dores e reage: “Não sou bandido. Só quero trabalhar e melhorar de vida”.
Em resposta ao fortalecimento eleitoral da extrema-direita personificada em Le Pen, Zidane conclama a população a não votar no candidato – e Jacques Chirac se elege com 80% dos votos.
A postura engajada contrasta, vale pontuar, com o silêncio alienado da maioria dos jogadores brasileiros da atualidade sobre temas sensíveis do país.
Mergulhados em cifras milionárias, eles se mostram mais propensos a usar redes sociais para falar de estética, videogame e diversão – esse conjunto de trivialidades capaz de transformar possíveis agentes de mudanças sociais em mensageiros do nada.