“O Gambito da Rainha”: o xadrez do gênio feminino revelado numa série imperdível da Netflix

Atualizado em 11 de novembro de 2020 às 14:57

A vida até parece uma festa — ou um jogo. Mas, na maioria das vezes, é uma guerra com desdobramentos dramáticos e heroicos.

“O Gambito da Rainha”, na Netflix, narra os dramas, vícios e virtudes de uma órfã que, dentro de seu caldeirão de abandono, usa o xadrez como tábua de salvação para sua realidade solitária.

Descobre-se um fenômeno de cognição e determinação. Um verdadeiro prodígio, regado a barbitúricos e calmantes em grande quantidade.

O vício a acompanha durante a maior parte do caminho até o topo do ranking mundial dos enxadristas. Em uma temporada de sete capítulos, ela chegará aos 22 anos no último episódio.

Isla Johnston interpreta, de maneira intensa, a jovem e curiosa Beth Harmon.

O pano de fundo da trama é o período da guerra fria. Nos conturbados anos 60, o tabuleiro servia como teatro de operações para o antagonismo ideológico.

Além das corridas armamentista e espacial das superpotências, com seus mísseis e espaçonaves, outra medida de poder eram xeques-mates e títulos internacionais, tanto que atletas soviéticos, e das áreas de influência da URSS no Leste Europeu, chegavam a sofrer assédio de empresários dos países ocidentais todas as vezes que saiam para disputas em solo capitalista.

Os milionários dos esportes tentavam sempre seduzir os atletas orientais com as promessas de um mundo de consumo ao qual eles não tinham acesso.

Cena de “O Gambito da Rainha”

Aqui no Brasil, as disputas eram bem populares nas rodas estudantis de esquerda. Era muito importante ter um bom jogador no grupo, na célula, no partido.

Lembro do meu irmão mais velho tentando ensinar a nós, pirralhos, a mover as peças no tabuleiro ao lado da edição revisada de “O Capital“, de Karl Marx.

Independentemente da foice, do martelo, ou do cifrão na cartola do Tio Sam, Boris Spassky e Bobby Fisher, megacampeões e fonte de inspiração para os duelos do filme, exemplificaram bem essa rivalidade nos campeonatos mundiais.

Naquele período, o universo do esporte e da política era ainda mais masculino do que hoje. O machismo, claro, imperava. Mas nossa heroína Elisabeth Harmon — Ania Taylor-Joy em performance espetacular, e sua versão mirim Isla Johnston – derruba reis, bispos, cavalos e peões.

O elenco conta também com Marielle Heller, no papel delicado e contraditório da mãe adotiva; Thomas Brodie-Sangster como Benny Watts, enxadrista campeão dos USA; Moses Ingram, no papel de Jolene, a única amiga do orfanato; e Bill Camp como Mr.Shaibel, o mentor de Elizabeth, responsável pela obsessão e foco doentio da menina pelo xadrez.

Uma composição em tela, com alternâncias e texturas de cores muito bem estudadas pelos diretores de fotografia e arte. 

As cores se refletem no passar dos anos, na maturidade de uma estrela em sua rota ao Olimpo.

Durante a jornada, apesar das tragédias, pouca lágrima derramou, mas será difícil segurar o choro dos telespectadores diante das conquistas e fracassos dessa menina dentro de seu grande caldeirão de abandonos.