O Haiti serviu de laboratório para técnicas de violência e controle aplicadas no Brasil, diz pesquisador

Atualizado em 8 de julho de 2021 às 23:54
Militares brasileiros da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti fazem a patrulha em No acampamento Jean Marie Vincent, em Porto Príncipe, por causa das eleições de 2010 – Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Marcos Queiroz, doutorando em Direito pela UNB e pesquisador pela Fulbright Brasil na Duke University, publicou, nesta quinta-feira (08), uma sequência de tuítes nos quais aponta como o Haiti serviu de laboratório para técnicas de violência e controle aplicadas no Brasil

Leia, abaixo, a íntegra do texto publicado por ele:

Com o assassinato de Jovenel Moïse, novamente os olhos mundiais se voltaram para o Haiti e a sua situação de tensão social. Nesse enredo, o Brasil tem um grande papel, que, como boomerang, não ficou só no Caribe.

Em 2004, o líder popular e padre da teologia da libertação, Jean-Bertrand Aristide é alvo de um golpe de estado e sacado do poder a força, assim como havia ocorrido em 1991. Com participação dos EUA, França e UK, ele é sequestrado e enviado para a República Centro-Africana.

Diante dos protestos populares, o Conselho de Segurança das Nações Unidas descreve a situação do Haiti como uma “ameaça à paz e segurança internacionais e à estabilidade do Caribe” e passa a Resolução 1542, criando a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti.

A justificativa era a manutenção do “ambiente pacífico, constitucional, seguro e estável.” Em setembro de 2004, tropas da Minustah desembarcam no Haiti lideradas pelo general Augusto Heleno, do Brasil, país que passaria a comandar as “forças de paz” até o ano de 2017.

Como descreve Miguel Borba de Sá, alegando uma nova forma de intervenção humanitária por meio do “o jeito brasileiro”, de suposta proximidade entre Brasil e Haiti (cultura, criatividade, herança africana, bom-humor, humildade, vocação pacífica e solidária, empatia), os governos petistas buscaram construir a legitimidade e a imagem de “sucesso” da operação. A despeito desse diplomacia militar a la Gilberto Freyre, a realidade foi outra. Sob tutela e supervisão dos EUA, o Brasil ficou incumbido de não permitir o retorno de Aristide ao poder.

A Missão deixou como legado a produção de novos conflitos, mais de 30 mil mortos em decorrência da epidemia de cólera (doença erradicada no país no século XIX e trazida pelas tropas da ONU) cerca de duas mil denúncias de estupro e abuso sexual (300 envolvendo crianças), a contaminação do Rio Artibonite (principal curso de água haitiano) e uma escalada da violência. O Massacre de Cité Soleil, em 2005, comandado por Heleno, era prenúncio do terror dos próximos anos.

No Brasil, o ricochete da Minustah veio a cavalo. Ela serviu de laboratório para técnicas de violência e controle populacional, como UPPs, intervenções militares, o uso de material de guerra (caveirões, helicópteros, tanques, fuzis e granadas) e o disciplinamento das tropas.

Tudo sob o slogan humanitário de “reestabelecimento da paz”. Um exemplo crucial. Em 2010, na megaoperação no Complexo do Alemão, com a filmagem do extermínio de jovens para todo o Brasil, 60% dos soldados haviam passado pelo Haiti.

Mas mais do que isso: a Missão empoderou novamente os militares na política brasileira, escanteados desde o final da Ditadura Militar, os quais passaram a se articular a partir do chamado “Clube do Haiti”.

No governo Bolsonaro, além do Gabinete de Segurança Institucional da Pres. da República, comandado por Heleno, mais quatro Ministérios, quatro Secretarias Estratégicas e o Assessor Especial do Presidente no STF são ocupados por oficiais que estiveram no Haiti.

Ou seja: a presença imoral do Brasil na Ilha Caribenha ajudou a reorganizar de maneira silenciosa a ala militar que avalizou o golpe de 2016 e sustenta o atual governo neocolonial de Bolsonaro, submisso a Washington.

O Brasil poderia ter agido diferente? Poderia ter realizado de fato uma política Sul-Sul? Desde março de 2004, a Venezuela atacou a intervenção internacional no Haiti. Logo após o golpe, ofereceu asilo a Aristide e não reconheceu o governo instaurado pelas Nações Unidas.

Chávez passou anos denunciando as violações e confrontando as posições de países da região, como Brasil, Chile, Argentina e Bolívia, todos com tropas estacionadas no país caribenho. Ele costumava lembrar a dívida de liberdade que toda a América Latina tinha com o Haiti.

Em 2006, com a chegada de René Préval (antigo aliado de Aristide) à presidência, houve uma aproximação política entre Haiti e Venezuela. Mesmo com a pressão de Washington, a diplomacia haitiana buscou construir novas alianças para sair da sinuca de bico em que estava.

Dessa aliança com Caracas, o Haiti tornou-se observador constante nos encontros da ALBA, foi alvo do projeto PetroCaribe (com fornecimento de petróleo e infraestrutura abaixo do custo) e teve sua dívida por combustíveis perdoada pela Venezuela.

Essas relações se tornariam instáveis a partir de 2011 com a presidência de Michel Martelly, eleito de maneira controversa e sob a intervenção da OEA, e, mais recentemente, com o bloqueio imposto por Trump sobre Caracas, dificultando operações da Venezuela no mar do Caribe.

O bloqueio norte-americano acentuou a crise energética haitiana, colaborando com o crescimento da instabilidade. Desde então, seja com Michel Martelly ou Moïse, as presidências foram marcadas pela fraude eleitoral, violência, corrupção e submissão a interesses externo.

Diante de tudo isso, o evento de ontem pode ser visto à luz do papel cumprido pelo Brasil no Caribe, bem como serve para entender os descaminhos da nossa democracia. Porém, parece que parte da mídia ainda não entendeu, dando voz a quem não deve como especialista em Haiti.

Para aqueles que querem entender mais os vínculos entre Minustah, Haiti e a ascensão do fascismo brasileiro, recomendo novamente a tese de Miguel Borba de Sá, “Haitianismo: colonialidade e biopoder no discurso político brasileiro”.