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O homem que enterrou Portugal

 

Portugal deve boa parte de suas dificuldades a ele

DE LISBOA

Os portugueses não são exatamente otimistas e positivos, como se vê pela música do país, o fado – um lamento de beleza melancólica e quase sepulcral em que a palavra saudade aparece com desmedida frequência. O povo olha mais para o passado épico e imperial do que para o presente. Portugal parece estar sempre de costas para o futuro. Os portugueses têm uma nostalgia peculiar: a de si mesmos.

De onde vem isso?

Antigas potências costumam mesmo tem temperamento nostálgico. Na Inglaterra, a Rainha Vitória – em cuja era o sol não se punha no império britânico — é constantemente evocada em filmes, livros, documentários etc.

Mas Portugal levou o saudosismo a um estado patológico do qual resultou um vínculo não com a tradição, mas com o atraso. Uma contribuição milionária para isso foi dada por um homem: Àntônio de Oliveira Salazar, o ditador que dominou Portugal por quatro décadas no século 20. Salazar chegou ao poder no início dos anos 1930, pelas mãos dos militares, e dele só saiu depois de um derrame que o mataria em 1970. (O salazarismo sobreviveria a seu criador alguns anos ainda, e só seria extirpado com a Revolução dos Cravos, em 1974.)

Tão ascético quanto Hitler, e como ele completamente devotado à missão de governar seu país, Salazar morreu pobre. Ao ser enterrado, tinha uma quantia modesta no banco e umas poucas casas simples. O problema é que ele deixou Portugal tão pobre quanto ele.

Tinha raiva do progresso. “O luxo da técnica, o delírio do mecânico, a vertigem do consumismo farão com que a civilização acabe por retornar cientificamente à selva”, disse ele. Industrialização era um mal para ele. Era avesso a inovações, e levou isso a tal ponto que uma única vez andou de avião. Foi de Lisboa a Porto, e ao descer disse, seco, que não tinha gostado. Jamais voltou a voar. Não casou, mas deixava espalhar rumores de casos românticos e de filhos bastardos, até para escapar das suspeitas que corriam sobre homens solteiros em seu tempo em Portugal.

Salazar disse, sobre Portugal, uma frase que nem seus adversários poderiam questionar: “O nosso passado pesa demais no nosso presente.” Quarenta anos depois de sua morte, quando Portugal vive uma crise econômica que está deixando os portugueses simplesmente apavorados, as palavras de Salazar valem para o legado que ele deixou para seu povo. A obra pró-atraso de Salazar pesa demais, ainda hoje, sobre Portugal.

Doentiamente saudosista, Salazar jamais aceitou que o império português se desfizesse pacificamente. Queimou, em absurdas guerras na África contra países que lutavam pela independência, uma riqueza que, se tivesse sido mantida em casa, deixaria Portugal hoje numa situação bem melhor. Quando os portugueses enfim disseram basta ao salazarismo, o estrago já estava feito – e o resultado pode ser visto na aflitiva luta de Portugal para não ser despejado da zona do euro.

Este texto foi publicado no Diário do Centro do Mundo em 27 de fevereiro de 2012.

Paulo Nogueira

O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

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