O ‘implacável, brilhante e sanguinário’ Jeff Bezos, da Amazon

Atualizado em 17 de outubro de 2014 às 17:32
Bezos
Bezos

Das centenas de empresas que nasceram no boom de startups de internet iniciado ainda na década de 90, poucas cumpriram o destino glorioso vislumbrado por seus fundadores.

Duas delas têm histórias conhecidas: o Google, com seu crescimento vertiginoso, seus fundadores peculiares e sua máquina de fazer dinheiro com buscas, e o ­Facebook, que faz parte do dia a dia de mais de 1 bilhão de pessoas e cuja criação foi tema de um filme premiado com três Oscar. Faltava a Amazon.

A empresa que começou vendendo livros em 1995 é hoje um gigante de 61 bilhões de dólares de receita, símbolo do comércio eletrônico, responsável pela derrocada de vários concorrentes, pela revolução dos livros eletrônicos e da computação em nuvem. Mas pouco se sabia do que se passa nos bastidores da empresa, em Seattle — até agora.

The Everything Store: Jeff Bezos and the Age of Amazon (“A loja de tudo: Jeff Bezos e a era da Amazon”, numa tradução livre), do jornalista americano Brad Stone, revela com detalhes a trajetória extraordinária da Amazon e pinta um retrato bastante interessante de Bezos, um empreendedor brilhante, arrojado, grosseiro e sanguinário.

Ou implacável — talvez esta seja a palavra que melhor descreve Bezos e o fenômeno Amazon. Não por acaso, Relentless.com (“Implacável.com”, em português) figurava no topo da lista dos possíveis nomes para a empresa que ele estava criando em meados de 1994.

Alguns amigos achavam que a palavra tinha conotação negativa, e foi só quando folheou um dicionário, começando pela letra A, que Bezos escolheu o nome Amazon — o maior rio do mundo, a maior livraria do mundo. (Mas, até hoje, quem entra em ­relent­less.com é dirigido à página da Amazon.)

A missão de ter a maior oferta de livros do mundo já foi cumprida, e agora Bezos se dedica implacavelmente à tarefa de transformar a Amazon na maior e melhor loja virtual­ do mundo — a loja de tudo.

Os poucos jornalistas que têm a chance de sentar frente a frente com o fundador da Amazon inevitavelmente mencionam sua gargalhada histriônica. No livro de Stone, que entrevistou mais de 300 funcionários e ex-funcionários da companhia, Bezos gargalha menos e reclama, xinga e ofende mais.

“Como atestarão muitos de seus funcionários, é extremamente difícil trabalhar para Bezos.” As invectivas dirigidas aos subordinados são tão comuns e ácidas que existe na Amazon uma palavra para descrevê-las: desvarios. Um exemplo: “Desculpe, mas será que eu tomei meu remédio antiburrice hoje?” Stone não tenta explicar o porquê desse comportamento, mas existem pistas. Bezos é superdotado.

Quando estava na 6ª série, o empresário, que completará 50 anos em janeiro, foi um dos garotos retratados num livro sobre escolas para superdotados. “Tim (a autora usou um pseudônimo a pedido da família de Bezos) é um aluno extremamente competitivo, mas liderança não é seu forte”, descreveu a autora.

Um de seus projetos na época era um sistema de avaliação dos professores pelos alunos para estabelecer um “ranking de como eles ensinavam, e não uma disputa de popularidade”, nas palavras de Tim.

Outro era reproduzir um aparelho que, com um motor e espelhos, pudesse criar a ilusão de um túnel infinito. Era a cópia de uma ­engenhoca que Tim vira em uma loja — mas o seu custaria menos, disse o jovem Bezos para a autora.

Preço, naturalmente, é um dos pontos principais de qualquer livro que queira contar a história de sucesso da Amazon. A companhia deverá ser a mais rápida a atingir a marca de 100 bilhões de dólares de faturamento (a previsão é que isso ocorrerá em 2015) — mas os lucros são outra história.

Desde os primeiros dias, Bezos sempre acreditou que o horizonte da Amazon estava muito distante. Ele insistia em que a empresa deveria dominar tudo que tocasse a experiência do consumidor e resistia à ideia de projetar lucratividade. “Se você faz planos para mais de 20 minutos no futuro nesse ambiente, está perdendo tempo”, dizia ele em reuniões.

A disposição de sacrificar as já apertadas margens do varejo em nome do longo prazo aparece em inúmeras ocasiões ao longo do livro, como na compra da Zappos, uma loja online de calçados. Bezos gastou 150 milhões de dólares em promoções e entregas expressas para forçar a mão dos fundadores da Zappos, que resistiam à ideia de vender.

Quando veio a crise de 2008 e a Zappos se viu sem crédito, Bezos pôde declarar vitória — pagando 900 milhões de dólares pela concorrente.

Há pelo menos dois momentos altos no livro. No primeiro, Stone conta como encontrou Ted Jorgensen, pai biológico de Bezos — o fundador da Amazon foi criado por seu padrasto, o imigrante cubano Miguel Bezos. Jorgensen tem hoje 69 anos e nem sequer se lembrava do nome do filho quando foi localizado pelo jornalista. “Ele ainda está vivo?”, foi sua rea­ção ao saber que era pai de Bezos.

O autor também conta a história da criação do leitor eletrônico de livros Kindle. A primeira versão foi lançada em 2007, mas Bezos já pensava na digitalização dos livros havia pelo menos uma década. Foi só em 2004, com o sucesso do iPod, que a Amazon começou a investir de fato em um leitor digital.

Na época, três quartos das receitas da Amazon vinham da venda de livros, CDs e DVDs. Se aparecesse um iPod dos livros, a Amazon teria um problema enorme nas mãos. Inspirado pelo livro O Dilema da Inovação, do professor de Harvard Clayton Christensen, Bezos montou uma equipe à parte para atacar o problema de um leitor digital.

“A missão é matar o negócio da Amazon”, determinou Bezos. Batizado de Lab126, o grupo trabalhou em segredo no Vale do Silício, tentando tornar realidade a visão de um leitor digital simples (que pudesse ser operado por uma avó), leve (para ser segurado com uma mão) e com conexão sem fio (para que livros pudessem ser comprados e baixados instantaneamente).

Outra demanda foi imposta em relação ao catálogo: o ­Kindle teria de ser lançado com uma biblioteca de 100 000 títulos digitais. A narrativa de Stone sobre o malabarismo que engenheiros e executivos tiveram de fazer para tornar realidade o sonho de Bezos é de tirar o fôlego — e o fim da história todos conhecem: o Kindle foi um sucesso estrondoso.

Com um personagem central enigmático e fora do comum — Bezos é obcecado por viagens espaciais a ponto de criar uma empresa especializada no setor, a Blue Origin — e uma pesquisa minuciosa sobre uma empresa conhecida, mas cujo funcionamento era misterioso, The Everything Store é um livro excelente e essencial para entender como uma empresa que dá pouca importância ao lucro e nenhuma para os métodos tradicionais de gestão pode ser uma das mais admiradas do mundo‚ desde que à sua frente haja alguém implacável e brilhante como Jeff Bezos.

O texto acima foi publicado, originalmente, na Exame.