O jornalismo deve dizer a Bolsonaro: não morreu aqui essa história. Por Moisés Mendes

Atualizado em 3 de abril de 2021 às 9:38

Publicado originalmente no blog do autor:

Bolsonaro lançou um desafio ao jornalismo, quando disse, no seu papel de caricatura de ditador, que os motivos da demissão dos chefes militares são assunto dele e do novo ministro da Defesa.

Só ele e o general Braga Netto saberiam o que aconteceu. E pronto. Essas foram as frases de Bolsonaro, na live de quarta-feira, dia seguinte ao da demissão em massa, referindo-se a Braga Netto:

“Ele me conhecia, eu conhecia ele e só nós sabemos o motivo disso tudo. Morreu aqui essa história. Não tem que discutir nada”.

Claro que, se os envolvidos no caso são pelo menos seis, não há como só ele e Braga Netto saberem dos motivos. Ele, o novo ministro, o ministro que saiu e os demitidos do comando das três armas devem saber alguma coisa.

Sabem todos que havia o plano de envolvimento dos militares dispensados no golpe de Bolsonaro. O plano se mantém. É o óbvio, dizem as emas do Alvorada. Mas o óbvio não diz tudo.

Bolsonaro deseja, como desejavam na ditadura, que o assunto morra aqui. Ele já havia dito ao general Eduardo Villas Bôas, em janeiro de 2019, na solenidade de posse de Fernando Azevedo e Silva no Ministério da Defesa:

“Muito obrigado comandante Villas Bôas, o que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.

O teor da conversa pode morrer entre eles, mas todos nós sabemos o que levou Bolsonaro a fazer agradecimentos públicos ao general.

Villas Bôas era bajulado por ter emitido, como chefe do Exército, em abril de 2018, a nota com a advertência para que o Supremo não deixasse Lula livre. E Lula foi encarcerado.

Hoje, o que Bolsonaro deseja que morra q na demissão dos militares pode ser tão ou mais grave.

O jornalismo já está devendo a grande reportagem sobre o abatimento dos militares depois da humilhação a que Bolsonaro submeteu dois generais, um almirante e um tenente-brigadeiro, mandados embora porque não se comportavam como seus empregados.

Não é um assunto que possa morrer aqui. Um dos déficits brasileiros é o da falta de culto à memória, o exercício permanente, muitas vezes cansativo, mas decisivo para a democracia, de preservação da verdade.

Não há verdade histórica sem memória. Argentinos, uruguaios e chilenos sabem muito bem que precisam estar atentos ao que aconteceu, para que crueldades não se repitam. Eles exercitam a memória.

Arbitrariedades só não irão se repetir se fatos públicos, envolvendo pessoas públicas, que interferem na vida de todos, não forem considerados segredos entre duas pessoas.

Bolsonaro não precisa dizer o que conversa com quem participa de suas decisões. Mas não pode dizer que os motivos do que decide são assuntos secretos.

A História mal contada é a que se submete a frases como essa de que a debandada no atacado de chefes militares morreu aqui.

Os ditadores desejaram que torturas, mortes e desaparecimentos fossem assassinados pela História e enterrados na mesma vala em que jogavam os que eles matavam.

Ditaduras torcem para que histórias desapareçam junto com os desaparecidos. Foi assim que foi dada como desaparecida por muito tempo a história do deputado Rubens Paiva.

Um dia comprovou-se, por obra do jornalismo, que Paiva desaparecera nas mãos de torturadores. Foi assassinado. O jornalista José Luís Costa, de Zero Hora, desmascarou a farsa do desaparecimento de Paiva.

Trocas de comandos não são a mesma coisa. Não. Mas as causas das trocas sugerem que o Brasil pode estar caminhando na direção de coisas parecidas com as da época em que mandavam matar inimigos e a História.

Bolsonaro está desafiando não só a capacidade de reação das Forças Armadas. Está dizendo ao jornalismo: o que eu sei vocês não ficarão sabendo, porque assim funciona e sobrevive um governo autoritário.

A história, como episódio, da demissão do alto comando das Forças Armadas interessa à História, como verdade. Não é um caso solto, muito menos uma deliberação administrativa, um impasse casual entre comandante e comandados. Foi grave e traumático.

O Brasil foi relapso na abordagem da memória da ditadura, apesar da bravura de algumas iniciativas, como a do Brasil: Nunca Mais (viva Dom Paulo Evaristo Arns) e a da Comissão da Verdade.

São dossiês de atos criminosos que não resultaram na perpetuação de gestos cotidianos de repulsa ao que aconteceu e em defesa da democracia.

O Brasil não se dedicou a ter nojo dos ditadores e ditadura, como desejava Ulysses Guimarães. E o jornalismo deixou sua missão incompleta.

Bolsonaro sabe disso. Enterrar a História, com o conluio da grande imprensa, é uma ação decisiva para seu projeto de poder.