O legado de Daniel Carvalho como Katylene: humor para auto-aceitação. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 10 de janeiro de 2021 às 14:44
Daniel Carvalho como Katylene. Foto: Reprodução/Instagram

Procure saber: ser LGBTQ+ na década de noventa (quando essa sigla ainda nem existia, apenas GLS – gays, lésbicas e simpatizantes) era incomparavelmente mais difícil.

Não apenas porque praticamente não se falava em homofobia e não-binarismo no Brasil, mas sobretudo porque o estereótipo do gay afeminado era quase um karma que conferia àqueles que o assumiam uma dolorosa sentença da completa marginalização.

A essa altura, quando o mercado ainda não estava de olho no pink money e a cultura LGBTQ+ não ocupava as redes sociais e os debates progressistas, a talvez única saída possível era o humor: caricaturar a si mesmo e fazer da piada da própria condição era a alternativa para os hoje chamados dissidentes de gênero.

A espetacularização como forma de auto-aceitação: o humor tornou-se a principal ferramenta para que gays afeminados assumissem sua própria narrativa – “viado”, antes um xingamento puramente ofensivo, funciona hoje como pronome de tratamento das gays.

No Brasil, o principal pioneiro desse humor caricatural e porque não dizer revolucionário é Daniel Carvalho, apresentador da extinta MTV e criador da icônica KatyLene, que morreu ontem aos 32 anos em decorrência de problemas renais. 

Katylene é a mãe de quase tudo o que conhecemos hoje dos memes LGBTQ – os melhores, vamos combinar. Daniel, um dos primeiros influenciadores da internet, não criou apenas um personagem: deixou para a comunidade LGBTQ um legado de autoaceitação e empoderamento através de uma ferramenta poderosíssima: o hábito de rir de si.

No país que é ainda hoje o que mais mata LGBTQ no mundo, a morte de Daniel Carvalho é uma grande perda para o humor e para a comunidade LGBTQ.

A carreira que ele construiu – e que iria ainda tão mais longe não fossem as intermitências da morte – deu a muitos gays, lésbicas, travestis e transexuais a chance de naturalizar as próprias vivências, por mais terríveis que fossem: uma apropriação narrativa e estética que moveu visivelmente o lugar dos dissidentes de gênero em uma sociedade quase irremediavelmente heterocentrada.

Os estudiosos da chamada “construção de narrativas” lançam mão de ferramentas talvez muito menos efetivas que o humor instrumentalizado por Daniel: técnicas metodológicas cuidadosamente desenhadas para ajudarem os chamados subalternos – mulheres, gays, negros, psicoatípicos, deficientes – a construírem sua própria narrativa, direito tão primário mas que lhes é frequentemente roubado.

Daniel fez esse trabalho sem precisar pisar na academia, usando apenas criatividade, autenticidade e o impagável poder de rir e fazer rir.

Se isso não é revolução, eu não sei o que é.