“O manual de Steve Bannon é atualizado conforme cada lugar”, diz ao DCM professora da Universidade de Zaragoza

Atualizado em 1 de novembro de 2020 às 8:11
A cientista política Cristina Monge

Enquanto a Espanha adota medidas cada vez mais estritas na luta contra o coronavírus, a vida política do país conhece surpresas à direita. Uma realidade que deve interessar os brasileiros, dada a história que nos assemelha, um passado ditatorial de extrema direita, força que volta tentando reescrever a história a seu modo.

“Esse passado que eles descrevem nunca existiu”, diz a cientista política espanhola Cristina Monge, que afirma no entanto ser o que a extrema direita mobiliza para assentar um projeto de poder opressor tanto na Espanha quanto no Brasil. “Para este reduto ideológico, o que o Estado tem que ter é um aparelho repressor”.

Segundo a professora da Universidade de Zaragoza, o projeto da extrema direita a nível mundial é deixar todo o resto à iniciativa privada. “Essa é uma das colunas básicas do seu ideário ultraneoliberal.”

Nesta entrevista para o Diário do Centro do Mundo, ela comenta o acontecimento que surpreendeu os espanhóis na semana passada e que pode mudar o rumo da política do país: a fracassada tentativa da extrema direita de derrubar a esquerda que governa atualmente a Espanha.

A cientista explica as estratégias do que chama de “ultraneoliberalismo” para desqualificar a esquerda e alerta para os riscos à democracia no país. Um verdadeiro reflexo das últimas tentativas do governo brasileiro de desmantelar o Estado.

DCM: Como a região de Zaragoza (Espanha) está gerindo a crise do coronavírus?

Cristina: Temos um confinamento já faz aproximadamente uma semana porque somos uma das comunidades com índices mais altos de contaminados, hospitalizações e ocupação das UTIs.

DCM: Durante todo o dia?

Cristina: Sim. Pode-se sair de casa, não é um confinamento domiciliar. O que não se pode, salvo por motivo justificado, é sair da comunidade autônoma. As questões justificáveis são laborais, educativas, sanitárias, cuidar de um familiar dependente, etc.

DCM: O partido de extrema direita Vox propôs na semana passada uma moção de censura contra o presidente do governo, o socialista Pedro Sánchez, que foi rejeitada pelo parlamento. O que explica a derrota?

Cristina: Com essa moção de censura, Abascal (líder da extrema direita) tinha um objetivo principal de conquistar a liderança da ala conservadora, da direita espanhola, que está representada pela primeira vez desde a redemocratização por três partidos: Vox, Partido Popular e Ciudadanos. O objetivo secundário era o de apresentar ao público o seu candidato às eleições catalãs. Nenhum dos dois deu certo.

Casado (líder do PP) se distanciou de forma clara, de maneira manifesta, das políticas da extrema direita. Abascal esperava de Casado um discurso mais suave, independentemente se votasse contra, porque o que queriam era tomar a liderança do Partido Popular, colocando-o em apuros, na necessidade de decidir, se abster ou votar contra.

Quando Casado se distanciou de maneira tão clara e com um discurso tão contundente como o que fez, deixou o Vox isolado, sozinho na extrema direita, e começa uma briga para liderar a direita institucional e a centro-direita.

Portanto, Abascal não esperava que Casado se distanciasse tanto dele e acabou totalmente isolado.

DCM: Por que o conservador Partido Popular disse que não apoiará o Vox, ao contrário do que fez há dois anos em Madri, Murcia e Andaluzia?

Cristina: Ele não disse que não o apoiaria. Em Madri, Murcia e Andaluzia, são governos do PP e Ciudadanos, que angariam votos do Vox, que de fato tem muita incidência e condiciona muito as políticas de governo (local). Isso a princípio não mudou, permanece igual.

DCM: Mas como a nova postura do PP impacta essas alianças regionais?

Cristina: Parece claro que o Vox não vai romper com os governos autônomos, com os quais mantém uma relação que facilita o governo, foi o que disse Abascal no dia da moção de censura.

Fizeram um gesto, um afago para iniciar conversas. Mas essa é uma incógnita: saber o que vai acontecer com esses governos autônomos.

A segunda incógnita é saber se Casado vai ratificar essa posição de guinada ao centro.

Desde que Casado dirige o PP, ele anunciou várias vezes uma guinada ao centro, o que nunca se confirmou, razão pela qual eu diria que é preciso cautela, esperando para ver como serão as próximas semanas.

DCM: O gesto de Pablo Casado pode ser explicado por uma perda de apoio do eleitorado espanhol do Vox?

Cristina: Esse gesto se explica por várias razões. Em primeiro lugar, o discurso do Vox ajudou, foi um discurso muito à extrema direita, muito Steve Bannon.

Sabemos dos partidos europeus onde convivem uma direita institucional, digamos sistêmica, com a extrema direita, quando a primeira trabalha num ritmo condicionado pela segunda, é a extrema direita que sai ganhando porque é ela que consegue marcar a agenda, o debate público, com os temas que lhe interessam e lhe são propícios.

Creio que Casado viu isso em toda a Europa, que as posições do Vox começavam a ser muito difíceis de sustentar, e é claro que não se deve ocultar que dentro do Partido Popular há um debate sobre tudo isso.

Havia setores moderados do PP que estavam começando a resistir a essa influência do Vox, pelo discurso que estava adotando.

DCM: O que explica a aparente centralidade da questão feminista, que opõe um governo feminista, com Unidas Podemos, a um partido forte de extrema direita, antifeminista?

Cristina: Os dois partidos no governo, tanto o PSOE quanto Unidas Podemos, fizeram do feminismo sua identidade, historicamente.

O que acontece é que as manifestações do último 8 de março na Espanha foram muito grandes, foram muito potentes e colocaram o tema na agenda política em primeira linha. Isso possibilitou que o governo tenha levantado mais vezes a bandeira do feminismo. Ao mesmo tempo, isso favorece o contrário: que a extrema direita utilize o feminismo como parte de sua posição.

DCM: O Vox parece mais com a extrema direita de Trump ou de Bolsonaro?

Cristina: É difícil porque é uma mistura um pouco própria. O manual de Steve Bannon é atualizado conforme as circunstâncias em que é aplicado em cada lugar, portanto não acredito que a comparação possa ser feita facilmente.

É uma extrema direita populista, com muita reminiscência do discurso franquista, que bebe do populismo de extrema direita que compartilham Trump e Bolsonaro, mas que aqui aplica um receituário mais característico da direita mais reacionária espanhola.

DCM: O que quer a direita mais reacionária espanhola?

Cristina: O que querem é governar. O discurso é muito identitário. Reivindicam a pior das identidades espanholas, de corte homogeneizador, que não respeita as diferenças culturais e territoriais e o que se está fazendo agora é um apelo ao passado, idealizando-o. Geralmente é um passado da época franquista.

Esse passado que eles descrevem nunca existiu, mas que idealizam como forma de reivindicação. Bauman tem um livro que se chama “Retrotopia”, que explica esse tipo de mecanismo. Fazem do passado uma espécie de utopia idealizada.

DCM: Há um problema similar quanto à memória da ditadura no Brasil e na Espanha?

Cristina: Aqui na Espanha, o principal problema é que depois de quase 40 anos de democracia, o Partido Popular foi muito acusado de defender a herança franquista. A questão parecia superada e agora volta com força.

Há uma anedota muito representativa disso tudo: a prefeitura de Madri (governada pelo PP) aprovou a retirada de placas de dois líderes socialistas da Guerra Civil que acabaram no exílio. Essas placas foram colocadas há mais ou menos trinta anos, aprovadas por unanimidade, sob a presidência do Partido Popular (risos).

O mesmo Partido Popular que aprovava por unanimidade colocar placas comemorativas aos líderes da luta democrática agora está atrás do Vox para retirar essas placas.

O que aconteceu nesses 30 anos? Pensávamos que a memória da ditadura era uma reflexão coletiva e uma condenação. Em boa parte, foi assim, mas ficaram resquícios, pequenos grupos que não desapareceram.

DCM: No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro quis privatizar o SUS mas recuou sob forte pressão. Por que na Espanha e no Brasil a extrema direita defende interesses ultraliberais?

Cristina: Porque fazem parte deste imaginário. Para este reduto ideológico, o que o Estado tem que ter é um aparelho repressor e no resto das questões fazem uma leitura da liberdade da mais reacionária e neoliberal, abrindo toda uma margem à iniciativa privada. Essa é uma das colunas básicas do seu ideário, ultraneoliberal.

DCM: Mas isso diferencia as extremas direitas brasileira e espanhola na Europa de outras extremas direitas, como a francesa, que tem um programa supostamente mais social…

Cristina: Não. Na verdade não diferencia. Quando Le Pen advoga por seu discurso populista, não tem esse ângulo mais social. Le Pen não levanta de forma alguma a bandeira de defesa dos serviços públicos. Sua concepção do Estado também é de um aparato repressor, tanto interna quanto externamente, fronteiras adentro e fronteiras afora, mas é um populismo de caráter neoliberal.

DCM: Então o que está dizendo é que a extrema direita tem uma visão estruturalmente ultraliberal?

Cristina: Sim, ultraneoliberal.

DCM: Há uma diferença?

Cristina: Total. O neoliberalismo é carregado de preceitos do liberalismo. O liberalismo tinha uma série de critérios, por exemplo de livre concorrência, de mecanismos reguladores do próprio mercado.

O que o neoliberalismo está gerando é concentração de poder nas mãos de um grupo, por oligopólios ou mesmo monopólios. Está-se esquecendo de muitos dos valores do liberalismo clássico. Esquecem-se de Adam Smith.

DCM: E ultraneoliberal?

Cristina: “Ultra” é uma forma de enfatizar seu caráter, mas sua essência é neoliberal.

DCM: A extrema direita espanhola é negacionista em relação à pandemia do coronavírus como a brasileira?

Cristina: Ela não é negacionista. É como em relação às mudanças climáticas; não é negacionista. Não negam que a pandemia existe, não negam que existem mudanças climáticas, mas o que fazem é acusar os demais de serem alarmistas, de ser apocalípticos. O que dizem é “o governo está usando tanto a pandemia quanto o aquecimento global para nos assustar e nos privar da nossa liberdade”. Mas não a negam, diferentemente do que acontece no Brasil.

DCM: E o que ela propõe?

Cristina: Medidas muito menos contundentes, não apoiam o decreto de estado de emergência. Inclusive acusam o governo de ser autoritário, não apoiam a restrição de circulação.

DCM: Segundo esse imaginário, o governo socialista é autoritário porque quer transformar o país numa União Soviética?

Cristina: Eles acusam sempre o governo da Espanha de autoritário, comunista e bolivariano. Tem um artigo que publiquei esta semana em que explico como o estado de emergência é percebido pela população espanhola como uma medida de proteção e que, no entanto, a direita está acusando-o de autoritário, o que tradicionalmente teria sido o contrário. Seria naturalmente a esquerda que se oporia ao esse estado de emergência, mas é a esquerda quem o defende enquanto a direita o acusa de autoritário.

DCM: Essa postura da extrema direita representa um risco para a democracia e a sociedade espanhola ou é menos durável e estrutural do que aparenta?

Cristina: Existe um risco, que para mim vai depender de duas coisas: em primeiro lugar e mais importante, da atitude que terá o Partido Popular, se o PP confirma essa distância, esse divórcio do Vox; e por outro lado, vai depender de como a crise econômica será gerida, se dentro de um certo intervalo de tempo a renda vital, que é uma espécie de subsídio mínimo, continuar não chegando aos setores mais vulneráveis e o ERTEs (sigla de Expediente de Regulação Temporária de Emprego, um subsídio de desemprego parcial) começarem a falhar, a extrema direita vai encontrar uma grande oportunidade para crescer como partido e proposta, e poderemos nos encontrar submetidos a uma situação que comprometa a estabilidade social e a democracia.

Do contrário, se conseguir-se gerir uma proteção social e fazer com que um mínimo econômico chegue aos setores mais frágeis, aí a extrema direita terá dificuldades.