O massacre financeiro dos estados pelo governo federal. Por José Carlos de Assis

Atualizado em 8 de março de 2021 às 15:31
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante cerimônia no Palácio do Planalto Foto: Evaristo Sá/AFP

A dívida principal dos Estados junto à União, consolidada em 1997, governo Fernando Henrique Cardoso, resultou de pressão direta do Fundo Monetário Internacional no sentido da realização de superávit primário conjunto nas três instâncias de governo, a saber, Executivo, empresas estatais e Estados. Foi uma violação direta do princípio federativo e da soberania política dos Estados, na medida em que gerou uma distorção fiscal injustificável. Além disso, resultou numa drenagem financeira de recursos dos Estados para a União provocando graves problemas patrimoniais e de renda para eles.

Na época da consolidação das dívidas, elas se elevavam, em moeda de hoje, a 112 bilhões de reais. Ao longo dos anos, a União incorporou os efeitos da chamada Lei Kandir e cobrou taxas extorsivas de juros, sempre para facilitar a realização de superávits primários, do que resultou pagamentos da ordem de 277 bilhões, até fins de 2016, ou cerca de 400 bilhões atualizados. Entretanto restavam a pagar, nessa data, cerca de 497 bilhões, o que caracteriza uma extorsão dos Estados. Diante disso, já não é mais o caso de cessar o pagamento da dívida. É o caso de reaver o que foi pago indevidamente, ou seja, 400 bilhões.

Entretanto, quando observada de um ponto de vista técnico, a maior parte dessa dívida é nula, desde a origem. Isso foi demonstrado no livro “Acerto de Contas – A dívida líquida dos Estados”, de J. Carlos de Assis, prefaciado pelo senador Roberto Requião. De fato, na medida em que grande parte da dívida dos Estados foi consolidada e paga pela União, nada mais restava a pagar: o cidadão da União, que é o emissor da moeda, é o mesmo cidadão do Estado ou do Município. Se ele pagou pela dívida em moeda ou títulos, não havia porque pagar de novo em nível estadual. A dívida estava quitada pelos contribuintes. E pronto.

Foi a exacerbação da fúria arrecadadora da União, pressionada pelo FMI a fazer superávit permanentes em seus orçamentos, que levou o Governo a violar o princípio federativo e forçar os Estados a realizar operações fiscais e financeiras contra seus interesses. À dívida consolidada em 1997 juntou-se posteriormente a retenção de recursos ainda maiores da Lei Kandir. Disso resultaram mais de 20 anos de ajuste fiscal sucessivo dos Estados, estreitando suas receitas e sacrificando principalmente suas funções de provedor de educação, saúde, segurança, infraestrutura e habitação para a população. De fato, todo o patrimônio estadual se deteriorou nesse período.

A reversão dessa situação injusta significa, portanto, devolver aos Estados os 400 bilhões de reais que lhes foram pagos indevidamente, no caso da dívida de 1997, juntamente com quase 1 trilhão de reais da Lei Kandir. Além disso, sua receita corrente será aliviada da carga de dívida, possibilitando maiores gastos de investimento e de custeio, assim como a redução de impostos. Os Estados também serão desobrigados de cumprir os acordos infames com que o Governo federal impõe a privatização como condição para empréstimos. Enfim, serão dadas condições para um programa de investimentos consistente nos Estados, do tipo Programa Cidade Cidadã, mencionado abaixo, para atacar as deficiências das periferias brasileiras.

Não há nenhuma razão de caráter monetário ou fiscal que justifique a retenção desse dinheiro no caixa da União em lugar de pagar o devido aos Estados. No estado de depressão em que se encontra, a economia suporta bem uma expansão fiscal e monetária como parte de um programa keynesiano de retomada do desenvolvimento. A vantagem de um tal programa é que seria executado de forma descentralizada, através dos Estados, atingindo positivamente toda a Federação, e compensando os Estados que sofreram os maiores sacrifícios com a dívida.

No caso da Lei Kandir, trata-se um expediente ainda mais escandaloso, adotado no início dos anos 80, para que a União se apropriasse de recursos dos Estados usando seu poder de escamotear a tributação. Na origem, o Governo se apropriou do ICMS, tributo estadual, para subsidiar com esses recursos exportações do agronegócio e de produtos primários, com a promessa de compensar os Estados. Não compensou virtualmente nada. Isso gerou uma controvérsia que durou cerca de duas décadas, sem resultados. Há dois meses os créditos estaduais acumulados se elevavam a 980 bilhões de reais, só por conta dessa dívida. Considerando a dívida anteriormente mencionada de cerca de 400 bilhões, o total chega a 1 trilhão 380 bilhões!

Entretanto, os governos estaduais sempre se revelaram muito fracos ou intimidados para cobrar essas dívidas com eficácia. O Supremo Tribunal Federal não ajudou, ficando numa posição ambígua. E o mais extraordinário é que, há cerca de dois meses, numa negociação vergonhosa, eles aceitaram trocar, no caso da Lei Kandir, 980 bilhões de direito líquido e certo dos seus impostos para pouco mais de 60 bilhões a longo prazo. Justifica-se.

Os governadores, exceto provavelmente o de São Paulo, têm medo de confrontar o governo central. Temem que uma pendência jurídica ou política com a União resulte em perseguição pelo ministro da Economia, que não aceita de forma alguma uma solução justa para essa contenda. Finalmente, como dependem da União para obter empréstimos, os governadores aceitam condicionar o acesso a crédito, externo ou interno, às boas graças do governo.

Entretanto, não obstante o acordo feito no caso da Lei Kandir, o assunto não deve ser definitivamente enterrado, sobretudo no plano político. O perdão dos governadores da parte maior da dívida dos Estados pode ser revertido pelo Congresso sob o argumento de que feriu o interesse público. Por outro lado, seriam estabelecidos parâmetros para impedir os Estados de usar a dívida restituída de forma irresponsável. O que vier a ser restituído deverá ser aplicado nos programas gerais de saúde, educação, segurança, infraestrutura e habitação, além do Programa Cidade Cidadã, de Emprego Garantido e Trabalho Aplicado, que pode ter características nacionais e poderia tornar-se o maior programa social e produtivo do país.

Colocamos a exigência do ressarcimento da dívida paga em excesso no contexto do pacto federativo, que deve entrar em debate este ano, com a denúncia de que a violação dos direitos constitucionais dos Estados não se deu agora, ou por acaso, mas seguiu programa claramente definido do exterior, basicamente pelo FM e Banco Mundial. Em lugar de confrontar as pressões dessas instituições, o Governo central preferiu romper o pacto federativo e obrigar os Estados a responder por uma dívida impagável, em detrimento de seus cidadãos.

O pagamentos a Estados (e municípios) desses recursos pode ser realizado no âmbito da teoria de Finanças Funcionais, que cada vez ganha mais adeptos nos países desenvolvidos. Também denominada Teoria Monetária Moderna, ela sustenta que uma economia em recessão profunda, como a brasileira, pode realizar grandes déficits orçamentários, sem risco de inflação, até esgotar-se sua capacidade produtiva. Isso é intuitivo. Se a economia está em recessão, não há pressão inflacionária a temer, pois a procura está abaixo da oferta. Se ela esgotava a capacidade produtiva, o governo deve atuar no sentido de reduzir o déficit. Além disso, se isso for acompanhado de uma adequada política econômica, o governo planejará a oferta de tal forma a equilibrar oferta e demanda.