O menino Bernardo e a culpa coletiva por um pedido de socorro que ninguém quis ouvir

Atualizado em 19 de novembro de 2014 às 16:10

bernardo

 

Numa carta a amigos, em que comentava sobre o linchamento de um jovem na Argentina, o papa Francisco escreveu o seguinte: “A cena doeu em mim. ‘Fuenteovejuna’, eu me disse. Sentia os chutes na alma”.

“Fuenteovejuna” é um clássico do século XVII do dramaturgo espanhol Lope de Vega. O povo de um vilarejo se une para se vingar de um comendador tirano. Um juiz é enviado pelo rei para apurar o caso. Ao perguntar aos moradores quem foi o assassino, todos respondem “Fuenteovejuna”. Assumem a culpa coletivamente.

O menino Bernardo Uglione Boldrini, de 11 anos, foi encontrado morto na cidade gaúcha de Frederico Westphalen. Estava dentro de um saco plástico enterrado às margens do Rio Mico. Foram presos o pai, o médico Leandro Boldrini, a madrasta, a enfermeira Graciele Ugolini, e a assistente social Edelvânia Wirganovicz.

A polícia trabalha com a hipótese de que o casal queria colocar as mãos no dinheiro deixado para Bernardo por sua mãe, que se suicidou com um tiro na cabeça em 2010. Com o menino vivo, Leandro teria mais dificuldade para, por exemplo, vender imóveis que estavam no nome dele e da ex-mulher.

Mas há uma culpa coletiva nessa tragédia. A tragédia de Bernardo vem se arrastando há muito tempo à vista de toda Três Passos, o município onde ele vivia. É um história longa e triste de torpeza, injustiça e omissão.

Em novembro, a notícia de abandono afetivo de Bernardo chegou à promotoria da Infância e da Juventude e foi aberto expediente para apurar sua situação familiar. Bernardo era alvo de comentários na cidade.

Em dezembro, o centro de assistência social entregou à promotoria um relatório dizendo que o garoto pernoitava e era alimentado na casa de conhecidos e tinha desavenças verbais com a madrasta. Passava sábados e domingos na rua. O pai não sabia onde ele estava e não o procurava.

No dia 24 de janeiro, ele mesmo se dirigiu ao 4º andar do fórum de Três Passos, onde funciona o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, e contou das ofensas da madrasta, do pai que não tomava atitude e de sua vontade de morar com outras pessoas. Foi levado para falar com a promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira. Reconfirmou tudo.

A promotora ingressou com ação na Justiça pedindo que a guarda provisória fosse dada para a avó materna, mas o juiz preferiu marcar uma audiência com o pai, ocorrida em fevereiro. Leandro quis uma chance de reaproximação. Bernardo aceitou. 

No dia 7 de abril, quando soube do desaparecimento, a promotora pediu que a guarda fosse dada para a avó. Mas o juiz determinou que, assim que encontrado, ele fosse encaminhado a um lar, pois faltavam elementos sólidos para comprovar que a avó poderia assumir a guarda. Muito pouco, tarde demais.

Seu abandono era notório. A violência psicológica desfilava na frente de todos. Um menino de 11 anos foi sozinho a um fórum para dar seu depoimento. O que faltava?

Bernardo pediu socorro e não foi atendido por ninguém.

«¿Quién mató al Comendador? / Fuenteovejuna, Señor / ¿Quién es Fuenteovejuna? / Todo el pueblo, a una»