O menino do MST que se tornou o símbolo do Brasil que dá certo. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 23 de março de 2018 às 17:17

Esta reportagem faz parte da séria sobre a Caravana de Lula no Sul, financiada pelos leitores através de crowdfunding. As demais estão aqui

Rose e o filho, Marcos Tiaraju

No dia 31 de março de 1987, havia uma manifestação de agricultores por terras na rodovia, perto do município de Sarandi, Rio Grande do Sul. Um caminhão não respeitou o bloqueio e o motorista avançou sobre os manifestantes. Três pessoas morreram, uma delas Roseli Celeste, mãe do pequeno Marcos, de 1 ano e quatro meses.

22 de março de 2018. Duas jornalistas que acompanham a caravana de Lula caem quando um ônibus que segue a comitiva teve que dar uma freada brusca na estrada. Nada grave, mas, minutos depois, entra no ônibus um médico de 33 anos. Ele examina as jornalistas e as mantêm em repouso.

O médico é o órfão de Roseli, a mulher que morreu se manifestando, quando nascia o Movimento dos Sem Terra. A vida dele e a história da luta por terra no Brasil se confundem. Ele é um marco, na verdade mais que um marco. Ele é Marcos Tiaraju Correa da Silva. Correa da Silva, ele herdou do pai, Tiaraju, do Movimento dos Sem Terra.

“Acho que sou a única criança no mundo que teve o nome aprovado em assembleia, com milhares de pessoas”, diz, bem-humorado. E não é exagero.

Para entender a história, é preciso retroceder aos primeiros passos do Movimento dos Sem Terra no Brasil, uma organização popular que, de certa forma, resgata a biografia de Sepé Tiaraju, o líder guarani que, há quase quatrocentos anos, liderou a resistência à ofensiva das tropas portuguesas na região das missões. Como a história registra, foi um massacre.

No final da ditadura, agricultores do Rio Grande do Sul, muito ligados à Teologia da Libertação na Igreja Católica, buscavam terras para plantar. Alguns eram descendentes dos primeiros imigrantes do Estado do Rio Grande do Sul, que já não tinham mais área para trabalhar, depois da divisão entre herdeiros deixar as antigas propriedades divididas em tamanhos mínimos para a agricultura.

Roseli e o marido se uniram a esses descendentes e, no dia 29 de outubro de 1985, nos primeiros meses da Nova República, com José Sarney na presidência, ocuparam uma área de 10 000 hectares, improdutiva, na região de Sarandi, a fazenda Anonni. Viviam debaixo de lona, ora pressionados pela prefeitura, governo do Estado ou governo federal, ora ignorados. Queriam a desapropriação legal da fazenda para a implantação de assentamentos.

Roseli chamava a atenção dos outros ocupantes porque estava com um barrigão, prestes a dar à luz. Três dias depois, em 1o. de novembro, nasce a criança. Era Dia de Todos os Santos, véspera de finados, e os católicos ligados à Teologia da Libertação viram nisso um marco — ou um sinal. “Eu fui a primeira criança a nascer em uma ocupação”, conta.

O bebê recebeu a atenção de todos, e os pais concordaram em dar a ele os prenomes Marcos Tiaraju, num registro repleto de símbolos. Depois da morte da mãe, o pai voltou com o filho para o acampamento. Permaneceu ali durante algum tempo, mas depois, cansado de esperar pelo assentamento que não vinha, decidiu morar na cidade, e viver como pintor de casas.

Foi nessa época que Marcos, com cerca de 10 anos, aparece em um documentário realizado por Tetê Moraes, “O sonho de Rose”. O menino diz que gostaria de ser pintor, como o pai. Eram muito pobres, mas os filhos, quando pequenos, querem muitas vezes fazer o mesmo que o pai. “Era assim comigo”, disse.

A fala de Marcos nesse documentário era importante porque ele já tinha sido um dos destaques no documentário anterior, feito pela mesma cineasta, “Terra para Rose”, que contava a história da mulher que morreu sem realizar seu sonho. O segundo documentário, não por acaso, se chama “O Sonho de Rose”.

A vida de Marcos seguiu até que, com a mudança do pai para Porto Alegre, em busca de melhores oportunidades como pintor, o coloca de volta no Movimento dos Sem Terra. A casa onde o pai foi morar com a madrasta e outros filhos era muito pequena, e o pai aceitou o convite de lideranças do MST para que Marcos fosse morar no assentamento Nova Santa Rita.

Marcos passou a dedicar sua vida à militância por terra. No assentamento, ele aprendeu que, na vida, é preciso se dedicar aos estudos e acumular conhecimento. “No assentamento, eu tinha escola, boa alimentação, condição muito boa de moradia, era uma vida muito diferente da que eu vivia até então. Aquilo me abriu os olhos: eu entendi que o conhecimento liberta as pessoas. E me dediquei aos estudos”, afirmou.

Alguns anos depois, já com o ensino médio concluído, um amigo mais velho que o acompanhava caminhada entre Goiânia e Brasíla, numa manifestação por reforma agrária, um amigo lhe disse que Cuba estava oferecendo vagas para formar médicos na América Latina e perguntou se ele não queria ir. “Eu nunca tinha pensado ser médico, mas, como sabiam que eu gostava de estudar, me ofereceram a oportunidade”, recorda.

Ele tinha 20 anos e precisava dar a resposta rapidamente. Longe de casa, disse sim, mesmo sem consultar o pai e voltou para o assentamento, onde teve que correr para tirar passaporte e preencher a documentação. Ele teria que viajar em uma semana, mas Cuba adiou a viagem e ele só iria no ano seguinte.

“Foi melhor. Conversei com meu pai, meus irmãos, tive tempo de me despedir”, recordou. Nos primeiros anos de 2006, Marcos Tiaraju desembarcou então em Havana e foi recebido como estudante na Escola Latino Americana de Medicina (Elam). Lá, conheceu a mulher com quem se casaria, ela da Costa Rica, também estudante de Medicina.

Formado e com aliança na mão esquerda, ele voltou ao Brasil. Ele e a mulher se submeteram ao exame do Revalida no Conselho Federal de Medicina e tiveram o diploma reconhecido no País, com plenos direitos de exercer a Medicina. Marcos Tiaraju voltou a morar no assentamento Nova Santa Rita.

Ele se tornou supervisor acadêmico do Programa Mais Médico, vinculado à Universidade Fronteira Sul. Tem uma empresa de medicina, juntamente com a mulher, que atende vários municípios na região de Sério, a cidade onde mora. Avalia agora que especialização médica fazer – pensa em algo ligado à saúde da família, mas ainda não decidiu.

Sabe que terá de ser algo ligado ao atendimento do povo. Aos 33 anos, tem uma vida profissional consolidada. Mas de uma coisa ele não abre mão. “Sou um militante do MST”, afirma. É nessa condição que ele integrou a Caravana de Lula pelo Sul do Brasil. Um militante médico.

Foi nessa condição que ele coordenou um ambulatório de saúde instalado no acampamento pela democracia em Porto Alegre, montado quando houve o julgamento do recurso de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4a. Região, no final de janeiro. É nessa condição, diz, que ele sempre estará no lugar onde houver uma manifestação por um Brasil melhor, mais inclusivo, democrático, civilizado.

Marcos Tiaraju, que se fomou médico

.x.x.x.x.

PS: Marcos permaneceria incógnito na Caravana não tivesse subido no ônibus para atender às duas jornalistas. Três dias antes, ele apareceu em uma foto publicada por um jornal regional de Bagé, em que tenta conversar com um homem armado, integrante da milícia contratada pelos ruralistas para tentar impedir Lula de se manifestar. Ninguém sabia nada a respeito dele, além de um militante, como tantos outros. Ele estava ali para defender um companheiro que estava sendo agredido pela milícia. A foto mostra Tiaraju se aproximando do homem armado, com as mãos em posição de quem pede calma. “Estávamos ali para defender um companheiro”, afirmou.

Tiaraju, atualmente de barba, conversa com miliciano armado que atacou Caravana de Lula em Bagé